O Ministério Público Federal (MPF) abriu um inquérito contra o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) por acessar prontuários médicos em hospitais para apurar possíveis crimes médicos. A Prefeitura de São Paulo e a Secretaria Municipal de Saúde também são alvos do inquérito do MPF, instaurado no último dia 19.
Nesta terça-feira (3), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, seguiu a mesma linha da tese apresentada pelo MPF. Moraes determinou o prazo de cinco dias para que a Prefeitura e o Governo de São Paulo expliquem sobre a suposta entrega de dados sensíveis de prontuários médicos ao Cremesp. O ministro também proibiu o fornecimento de dados pessoais em prontuários de pacientes que realizaram o aborto.
A denúncia, que motivou o inquérito do MPF contra o Cremesp, foi feita pelo Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), após o afastamento de duas médicas do Hospital Vila Nova Cachoeirinha.
O Simesp alega que as profissionais passaram a ser perseguidas depois que funcionários da Secretaria Municipal da Saúde tiveram acesso aos prontuários. Relatos obtidos pela reportagem apontam que as médicas teriam agido de forma suspeita, descumprindo o protocolo estabelecido para casos de aborto por estupro, o que implicaria na possibilidade de terem realizado o procedimento nos casos punidos em lei, configurando crime médico. A Gazeta do Povo não teve acesso aos autos, que correm sob sigilo judicial.
“O conselho é um órgão fiscalizador da medicina. Se ele não pode ter acesso a prontuário de pacientes, como é que a fiscalização será feita? É como proibir a Anvisa de fiscalizar farmácia ou como proibir a Polícia Militar de pedir o documento de identidade do motorista no trânsito durante uma blitz”, questiona Francisco Cardoso, médico e membro do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Para Cardoso, há um risco de ser aberto um precedente perigoso. “Na minha visão, a ação do MPF nesse caso é temerária. Porque se prevalecer a tese dele, os conselhos profissionais de fiscalização de profissões, tanto os CRM quanto outros, vão ficar impedidos de exercer a sua ação fiscalizatória”, complementa.
Decisão contra o Cremesp pode favorecer impunidade de médicos criminosos
Médicos e conselheiros ouvidos pela reportagem alertam que a função fiscalizadora do Cremesp pode ser seriamente comprometida caso o MPF dê razão à denúncia, mova uma ação e a Justiça de São Paulo decida favoravelmente ao pedido do Simesp. A legislação que regula os conselhos de medicina é clara ao listar como atribuição dos conselhos regionais a fiscalização do exercício da profissão de médico (art. 15).
Além disso, a norma estabelece que o órgão tem como atribuição “conhecer, apreciar e decidir os assuntos atinentes à ética profissional, impondo as penalidades que couberem”.
Segundo Venceslau Tavares Costa Filho, advogado e professor de Direito Civil da Universidade de Pernambuco, existe um equilíbrio delicado entre o sigilo médico e a função fiscalizadora dos conselhos.
“Caberia um questionamento a uma possível quebra do sigilo do prontuário, pois o Código de Ética Médica, que é aprovado, assegura o direito ao sigilo médico. Por outro lado, o Código de Ética Médica considera que constitui infração ética deixar um médico de fornecer cópia de um prontuário médico quando requisitado pelos conselhos regionais de medicina”, avalia Costa Filho.
Caso a tese do MPF prevaleça, denúncias de erros ou crimes médicos poderiam deixar de ser investigadas, como a do médico plantonista que teria se recusado a atender uma mulher na cidade de Vinhedo (SP) em janeiro deste ano. Ou a denúncia de que um médico residente teria estuprado uma paciente durante uma cirurgia na Santa Casa de São Paulo.
O professor ressalta que retirar a prerrogativa dos conselhos de medicina de ter acesso a prontuários médicos geraria um esvaziamento da competência fiscalizadora. “Não há dúvida que o acesso de prontuários pelos conselhos de medicina é necessário. Pois, se não fosse essa exceção, haveria uma dificuldade quase intransponível para que eles apurassem uma falta ética do médico”, acrescenta Costa Filho. Segundo ele, o médico poderia alegar o sigilo simplesmente para impedir o acesso a provas por parte das autarquias.
Raphael Câmara, médico obstetra e conselheiro federal pelo Rio de Janeiro, classifica a tese do MPF como parte de uma estratégia ideológica. “Não existe sigilo médico para conselhos, isso acabaria com o poder fiscalizatório previsto em lei. Essa tese está sendo uma estratégia de ONGs que defendem o aborto livre para tentar permitir o aborto ilegal no país”, afirma.
Em nota, veiculada em 8 de maio, o Simesp afirma que “o encaminhamento de dados de atendimentos sem a autorização dos pacientes ou ordem judicial é uma violação da Constituição Brasileira, da Lei Geral de Proteção de Dados, do sigilo profissional e do Código de Ética Médica”.
O sindicato ainda acrescenta que questionaram “a autoridade do Conselho em legislar sobre este respeito e a perseguição a trabalhadores que atuam sobre conceitos científicos e dentro da lei, motivada pelo viés ideológico de sua atual direção”. O Cremesp, por sua vez, optou por não se manifestar.
Facilidade no acesso ao aborto em casos de estupro incentiva práticas irregulares
Segundo relatos de médicos que acompanharam parte das investigações, o Hospital Vila Nova Cachoeirinha era conhecido no meio médico por desrespeitar os protocolos definidos pelo Ministério da Saúde para interrupções de gestações. O manual de “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento” de 2022, fundamentado na lei 13.728 de 2018, estabelece que os profissionais de saúde devem comunicar os casos de gestação decorrentes de estupro à polícia e preservar evidências materiais do crime para serem entregues às autoridades.
Um médico que prefere não se identificar relata que, em diversos casos, não havia registro sequer que indicasse que as gestações interrompidas eram resultantes de estupro. “Eles nem se preocupavam em fazer a simulação de um relato de estupro. Bebês de 28, 30, 34 semanas, que não eram submetidos à assistolia fetal, eram assassinados de outras formas, dentro ou fora da barriga da mãe”, denuncia. Caso as informações descritas sejam confirmadas pela Justiça, os médicos podem ser enquadrados como abandono de incapaz que resulta em morte, com pena de até 12 anos de reclusão.
Outro ponto crítico apontado pelos médicos é a ausência de registros formais de bebês abortados, como declarações de nascido vivo ou certidões de natimorto ou óbito, o que comprometeria a destinação correta dos corpos dos bebês mortos. “Em casos de nascimento de um bebê de 24 semanas, o que seria o certo? Levá-lo para a UTI neonatal e tentar salvar esse bebê. O que eles fazem? Deixam o bebê morrer. Isso é crime de homicídio, agravado por ser médico. Um médico tem o dever de salvar vidas”, afirma outro profissional que relata práticas semelhantes em outros hospitais do país.
O Código Penal estabelece pena de até quatro anos de reclusão para quem provocar aborto, mesmo com o consentimento da gestante (art. 126). A pena é maior do que a da própria gestante que consentir a realização do crime, cuja detenção pode chegar a três anos (art. 124). Já o artigo 128 do Código Penal não penaliza o crime de aborto em gestações em caso de estupro. A Gazeta do Povo já mostrou que os protocolos para realização de aborto em caso de estupro são simplistas. Dessa forma, o acesso se torna facilitado para mulheres que procuram o serviço com a alegação de terem sido estupradas.
STF suspendeu resolução do CFM que considera prática abortista desnecessária e dolorosa
Segundo os médicos, a assistolia fetal, utilizada para matar o bebê em gestações de 5 a 9 meses, é um procedimento que demanda alto conhecimento técnico e equipamentos específicos. A prática consiste em injetar, normalmente, cloreto de potássio no coração do bebê através de uma agulha que atravessa a barriga da mãe. Para localizar o órgão com precisão, o médico deve usar um aparelho de ultrassom para monitorar o movimento da agulha. Segundo médicos, há diversos estados, como a Paraíba, que a falta de profissionais treinados e equipamentos adequados impede a realização do procedimento.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) já havia emitido uma resolução classificando a assistolia fetal uma prática dolorosa e desnecessária, já que depois de 22 semanas o bebê é viável fora do útero. Posteriormente, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a norma em maio deste ano. Em resposta, Francisco Cardoso e Raphael Câmara, conselheiros do CFM, divulgaram recentemente um vídeo solicitando que o tema seja pautado pelo STF. Eles afirmam que a autarquia tem recebido um número crescente de denúncias relacionadas a mortes decorrentes desse procedimento.