O Plano Pena Justa, que tem foco em supostas melhorias nas condições dos presídios, direitos humanos de presos e em uma proposta de desencarceramento, principalmente em casos de crimes patrimoniais sem violência, volta à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quinta-feira (5) para homologação dos ministros. A medida vai impactar diretamente a segurança pública nos 26 estados e no Distrito Federal (DF), cujos governadores deverão implementar as ações determinadas pelo STF em um prazo que varia de seis meses (para adequação ao plano) a três anos (para implantação completa das medidas).
A reportagem apurou que o governo já dá como certa a homologação do plano devido a negociações prévias com o Supremo.
Os principais impactos aos entes federativos devem se dar em pontos como políticas de segurança alimentar e nutricional destinadas aos detentos; emissão de alvarás da vigilância sanitária para os estabelecimentos prisionais atestando que o ambiente é adequado, por exemplo, para receber determinando número de custodiados e aumento da oferta de trabalho, renda e remição de pena. Os estados também deverão ampliar sistemas de monitoramento eletrônico, as chamadas tornozeleiras eletrônicas para estimular o desencarceramento.
O aparelho é colocado em detentos para que possam ser monitorados remotamente e respondam a processos em prisão domiciliar.
A Gazeta do Povo procurou governadores para avaliarem a medida. O governador do Paraná, presidente do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud), disse, por meio de sua assessoria, que o plano ainda não foi apresentado oficialmente aos estados, mas assim que for lançado será tema de análise pela Secretaria de Segurança Pública ao lado do Poder Judiciário. “O Paraná trabalha diariamente em prol de melhorias no sistema penitenciário e tem bons indicadores de ocupação, com 36,5% dos apenados trabalhando”, informa.
Ainda segundo Ratinho Junior, há algumas penitenciárias que operam no sistema de 100% de ocupação, entre estudo e trabalho e isso ocorre em parcerias com o Tribunal de Justiça e demais órgãos da Execução Penal. “Uma delas, inclusive, recebeu a visita de uma ministra do Supremo Tribunal Federal. Nelas, os indicadores de reincidência são bem pequenos”, completa.
Nos bastidores a informação vinda de outros gestores estaduais é que os governadores vão aguardar, com certa preocupação, a homologação do plano para avaliar diretamente os impactos. Os governadores já vinham se opondo a propostas do governo para a área, como o Susp (Sistema Único de Segurança Pública), instituído pela Proposta de Emenda Constitucional da Segurança, principalmente por não estarem sendo consultados. “Não dá para falar de segurança pública quando você tem uma legislação que protege muito mais o bandido que o cidadão”, disse o governador do Sergipe, Renato Casagrande (PSD), em uma reunião com Lula em novembro.
Os governadores de Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Espirito Santos e Minas Gerais disseram que farão frente a qualquer medida que possa ser adotada para enfraquecer os estados e que as regiões Sul e Sudeste já têm sistemas de segurança eficientes estabelecidos e trabalham na implantação do Inquérito Digital, do Sistema Único de Denúncia e do Sistema Integrado de Segurança Pública (Sisp), que reunirá as bases de todos os registros de ações no combate ao crime.
Assim, o novo plano “Pena Justa”, de desencarceramento, elaborado pelo governo Lula, tende a ser mais um item que governadores possam se mostrar críticos ou contrários. Ele se soma a a críticas à descriminalização da maconha em até 40 gramas definida pelo STF em junho com o objetivo, segundo a Corte, para diferenciar traficantes e usuários. Gestores estaduais saíram em defesa da PEC 45/2023 que tramita no Congresso inserindo, ao artigo 5º da Constituição Federal, ser crime tanto a posse quanto o porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, atacaram a decisão do STF.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL) disse, à época da decisão do STF, que a respeita, mas é contra. Afirmou que a segurança pública enfrentaria uma confusão enorme, pelo fato de o porte não ser mais crime, mas a comercialização ser criminalizada. Ele disse que a judicialização da política gera situações erradas e que um “se mete em questões do outro”.
O governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL) foi outro a fazer críticas à descriminalização e logo após a decisão do Supremo. Ele sancionou uma lei estadual, votada na Assembleia Legislativa do Estado em julho passado, que previa multa para consumo e porte de maconha em locais públicos em todo o estado. “Temos que livrar a sociedade do mal do século que é a droga”, disse Jorginho Mello.
Plano foi elaborado pelo governo Lula e será homologado pelo STF
O plano foi apresentado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em setembro passado e o STF estipulou que estados e o Distrito Federal apresentem seus planejamentos para ação, pautados no Pena Justa nos prazos estabelecidos assim que o documento esteja homologado pelos ministros.
Estados e DF podem propor novas medidas e estabelecer suas respectivas metas e indicadores, mas não devem fugir do escopo determinado pelo “Pena Justa” elaborado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), comandado pelo ministro Ricardo Lewandowski, que se mostrou favorável a uma política de desencarceramento, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e que considerou propostas apresentadas pela sociedade civil organizada.
O CNJ vai monitorar o cumprimento das metas e indicadores a cada seis meses enviando ao STF um relatório sobre avanços e dificuldades, bem como sugerindo ajustes. O Supremo será a instância máxima de supervisão e poderá ser acionado em caso de descumprimento das medidas, com possíveis responsabilizações aos gestores. Apesar de indagados, STF, MJSP e Secretaria Nacional de Políticas Penais não informaram quais penalizações os estados podem sofrer.
“Os presídios e penitenciárias estão, quase na totalidade, sob a responsabilidade dos estados. Se algum gestor optar por não atender às determinações, ele poderá sofrer cortes de verbas? Poderá ter acesso a créditos limitados? Isso precisa ser explicado”, reforça o especialista em segurança pública, Marcelo Almeida.
Para o especialista, recairá sobre os estados o maior ônus da determinação do STF, sendo que governadores nem foram agentes decisivos na elaboração do plano. “Ou seja, o peso maior ficará com os estados e o DF que terão de colocar em prática o planejamento proposto pelo governo federal. Isso é preocupante em mais de uma ótica, sem contar que deve promover uma política de desencarceramento em massa e colocar toda a população em alerta”, avalia.
STF diz que Brasil sofre com a violação massiva de direitos humanos no sistema prisional
Para o STF, o plano se justifica porque o Estado brasileiro sofre com a “violação massiva de direitos humanos no sistema prisional”. Este documento nasceu após o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ingressar no Supremo com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), que recebeu o número de 347, no ano de 2015. A petição quer melhorias às condições carcerárias e o enfrentamento à superlotação nas penitenciárias.
O plano já teve voto do presidente do STF, que é o relator da ADPF, ministro Luís Roberto Barroso, pela homologação. O ministro André Mendonça acompanhou o relator pela homologação, mas com ressalvas. A tramitação estava parada porque em outubro o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas.
Outro ponto elencado como crítico no “Pena Justa”, lembra o advogado especialista em Direito Penal, Alex Erno Breunig, é que a implementação de algumas das medidas previstas exige mudanças na legislação, no Código Penal e no Código de Processo Penal, com alterações que deveriam passar, obrigatoriamente, pelo Poder Legislativo. “Me parece mais uma vez um avanço do judiciário sobre as atribuições do Congresso, do Senado e da Câmara”.
O especialista em segurança pública, Sérgio Leonardo Gomes aponta outro fator preocupante sobre a política de desencarceramento. Segundo ele, a liberação de detentos é maléfica, mesmo que sob o argumento de terem praticado crimes de menor potencial ofensivo, sem o uso da força. O especialista classifica a necessidade de análise, com muitos critérios, para não estimular o avanço da criminalidade diante da sensação de impunidade. “Sem punições, os infratores podem se sentir estimulados a escalar na vida criminosa se tornando cada vez mais perigosos e violentos, o que reflete na sociedade”.
Ele também avalia que a superlotação em presídios não é causada por pessoas que cometeram crimes leves. Isso porque já se tem um avanço desenfreado de solturas em audiências de custódia resultando “em um nível preocupante de reincidências”. “Há casos em diversas cidades de uma mesma pessoa presa dezenas de vezes. No dia seguinte às prisões, está de volta às ruas cometendo novos crimes. Quem sofre com isso são os profissionais da segurança pública que fazem o seu papel prendendo e a sociedade que enfrenta as ações criminosas”, reitera.
A elaboração do plano “Pena Justa”, que foca em uma política de desencarceramento e de direitos humanos, ganhou força em 2023 quando o Plenário do STF julgou parcialmente procedente a ação do PSOL e reconheceu a existência de um “estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro”. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski abraçou a pauta.
Ele tem defendido uma política de desencarceramento e avaliou, quando tomou posse no Ministério, que a violência e a criminalidade no país têm raízes coloniais e sociais, e que o combate à criminalidade deve ir além da repressão policial, exigindo “políticas públicas que superem o apartheid social que afeta parte da população brasileira”.
O “Pena Justa” vem apoiado em um discurso que associa prisões a questões raciais. O documento elenca o racismo contra pessoas negras como um dos fatores de superlotação de cadeias no Brasil.
Para o ministro Barroso, o “Pena Justa” serve de referência para planos a serem elaborados por gestores públicos em outras ações estruturais. “É um plano extenso, detalhado, complexo e de grande qualidade. Pretendemos que produza o impacto de transformar de maneira profunda o sistema prisional “, disse.
Plano prevê de segurança alimentar e nutricional a penas alternativas
O Plano Pena Justa contempla quatro eixos fundamentais:
- Controle da entrada e das vagas do sistema prisional
- Qualidade do ambiente, dos serviços prestados e da estrutura prisional
- Processos de saída da prisão e da reintegração social
- Políticas para não repetição do estado de coisas inconstitucional
Cada um desses temas é desdobrado em medidas, metas e indicadores de monitoramento e avaliação.
O documento elenca que, para solucionar a superlotação carcerária e o excesso de aprisionamento, foram apresentadas ações como:
- Adoção de modelo nacional de audiências de custódia
- Ampliação das medidas diversas da prisão como penas alternativas
- Monitoramento eletrônico (tornozeleiras eletrônicas) e justiça restaurativa (tese defendida pelo Supremo para justificar suas decisões)
- Aumento do acesso à defesa, com o fortalecimento das Defensorias Públicas
Sobre a qualidade do ambiente prisional, constam como essenciais:
- Segurança alimentar e nutricional
- Emissão de alvarás da vigilância sanitária para os estabelecimentos prisionais
- Aumento da oferta de trabalho, renda e remição de pena
No eixo sobre ações à implantação de programas de reinserção social, qualificação profissional e protocolo de soltura consta:
- Compromisso de instituir a Política Nacional de Enfrentamento ao Racismo na Justiça criminal
- Organizar previsões obrigatórias de destinação do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) considerando despesas específicas para políticas de atenção à pessoa egressa
Para o ministro Luís Roberto Barroso, o combate ao estado de coisas inconstitucional deve ser analisado com máxima prioridade pelo governo federal e governos estaduais, “tendo em vista a massiva violação de direitos fundamentais existente”. O documento justifica que o plano é necessário porque há “uso excessivo da privação de liberdade” no Brasil.