A declaração do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) em que reconhece erros ao criticar as câmeras corporais da Polícia Militar foi recebida com ressalvas por especialistas que pesquisam segurança pública. Eles dizem que a redução das mortes pela polícia ocorre não apenas por causa do uso do equipamento, mas também devido a várias políticas de fiscalização das operações pela própria PM.
Nesta quinta-feira (5), o governador disse que errou nas críticas que fez ao uso das câmeras corporais pela corporação desde o período em que era candidato ao cargo. Ele afirmou que vai se empenhar para que os novos equipamentos —adquiridos pelo governo no primeiro semestre deste ano, e que não possuem capacidade para gravar de forma ininterrupta— sejam eficazes para coibir violência praticada por policiais.
Esse ponto também é criticado por especialistas, uma vez que o método de acionamento das câmeras é considerado importante no controle de irregularidades. Hoje, os equipamentos usados pela corporação gravam de forma ininterrupta com imagens de menor qualidade e sem áudio. O policial aperta um botão no dispositivo para filmar em HD e gravar áudio.
Com a mudança, caberá ao policial ligar a câmera para que a gravação tenha início. Há a previsão de acionamento automático, feito pelo Copom (Centro de Operações da PM) ou por geolocalização, com base no endereço das ocorrências.
“Se não existe um esforço de corregedoria, de treinamento, de processos rápidos de apuração de malfeitos do policial na rua —um caminho que a polícia vinha seguindo no último governo— a câmera não faz grande diferença”, diz o professor Leandro Piquet, coordenador da Escola de Segurança Multidimensional da USP.
Prova disso, segundo o professor, é que a onda de brutalidade policial dos últimos meses ocorre mesmo com câmeras corporais que gravam ininterruptamente ainda em uso. Em pouco mais de um mês, houve ao menos três casos em que a PM matou pessoas desarmadas —entre elas uma criança de quatro anos— e ao menos outros três de agressões graves contra cidadãos.
Piquet cita as Comissões de Mitigação de Risco —que devem ser instauradas para cada caso em que a PM provoca alguma morte— e a revisão aleatória de imagens de câmeras corporais por chefes de batalhão, para fins de treinamento, como medidas eficazes de contenção da tropa. Segundo o pesquisador, as duas políticas foram enfraquecidas desde o início do governo Tarcísio.
“Se o policial cola chiclete na câmera [e não há punição], se ninguém olha as imagens, se há um clima de desordem institucional, não muda completamente nada o comportamento”, diz o professor.
Além de prometer ampliação no programa de câmeras corporais e garantir que o novo modelo vai funcionar, Tarcísio disse que haverá punição exemplar dos policiais que se envolveram em agressões e mortes de vítimas desarmadas.
“Vai ser expulso da corporação, não tenha duvida disso”, disse o governador sobre o policial militar Luan Felipe Alves Pereira, 29, que arremessou um homem de cima de uma ponte na zona sul da capital. Pereira foi preso preventivamente nesta quinta.
Além disso, a Justiça decretou a prisão preventiva do soldado Vinicius de Lima Britto, tornando-o réu por ter matado, com 11 tiros pelas costas, um homem de 26 anos no Jardim Prudência, na zona sul da capital.
Para o professor de administração Gustavo Tavares, do Insper, os estudos científicos são claros ao mostrar uma redução da letalidade policial a partir do uso das câmeras na farda da PM paulista. Ele orientou duas pesquisas, feitas por policiais militares, que comparam o antes e depois da implementação das câmeras. Tavares também conduz outras pesquisas sobre o tema que estão em andamento.
“Levando tudo em conta, a produtividade [dos policiais] continua igual, a criminalidade não aumentou e a letalidade caiu. A princípio, foi uma politica bem-sucedida”, diz o professor.
Ele diz que pesquisas sobre o uso das câmeras corporais em vários países do mundo também demonstram que o método de acionamento das gravações também é decisivo na redução das mortes provocadas por policiais. Em geral, há maior risco de manipulação das imagens quanto maior for a autonomia do policial para decidir como usar o equipamento.
“É muito ruim ter uma politica que é cara, que visa reduzir o uso da força, e ter um governador e um secretario que falam contra isso”, diz Tavares. “Isso diminui muito o potencial de redução da letalidade.”
Uma das pesquisas orientadas por Tavares encontrou uma redução, em média, de 87% nas mortes decorrentes de intervenção policial nos batalhões que passaram a usar as câmeras. A comparação foi feita com batalhões que não adotaram os equipamentos.
O mesmo estudo concluiu que a redução nas mortes é mais acentuada em batalhões especiais —Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e BAEPs (Batalhões de Ação Especial de Polícia), treinados para combate contra crime organizado e conhecidos pelos altos índices de letalidade— do que em batalhões convencionais da capital.
Já um estudo conduzido por Piquet e pela professora Joana Monteiro, da FGV (Fundação Getúlio Vargas), mostrou não só uma redução das mortes, mas aumento na produtividade. Houve alta de 102% nos registros dos casos de violência doméstica e de 24% nas apreensões de armas de fogo pelos policiais que usavam o equipamento, por exemplo.
Para medir o impacto no trabalho policial, os pesquisadores compararam o desempenho de batalhões com e sem câmeras, em regiões que têm índices de criminalidade compatíveis. A vitimização de policiais também diminuiu.
Em 2022, as mortes de PMs em serviço caíram ao nível mais baixo já registrado, um fenômeno que também coincidiu com a adoção das câmeras corporais.