A Justiça brasileira está unida contra o corte de gastos. Em questão de horas, representantes de juízes, promotores, procuradores e defensores públicos publicaram uma série de manifestos com críticas a um ponto bem específico do pacote do governo Lula.
A queixa é contra a proposta que, a pretexto de combater “supersalários”, limita pagamentos acima do teto de remuneração do funcionalismo.
Hoje auxílios de todo tipo, desde que “indenizatórios”, podem ser pagos por fora do teto – que é de pouco mais de R$ 44 mil e será reajustado para R$ 46,3 mil em fevereiro.
Na proposta de emenda à Constituição (PEC) 45/2024, assinada pelo ministro Fernando Haddad, o governo propõe que só poderão exceder o teto as parcelas indenizatórias “expressamente previstas em lei complementar de caráter nacional aplicada a todos os Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos”.
Hoje a Constituição (artigo 37, parágrafo 11) diz que não podem ser computadas, para efeitos do limite remuneratório, as parcelas “previstas em lei” – no caso, lei ordinária. Ao tentar mudar o trecho e remeter a lei complementar, que exige quórum maior e prevalece sobre as ordinárias, o governo busca fechar brechas.
A lei complementar citada pela PEC não existe; terá de ser proposta. Supostamente, será mais dura que o projeto de lei contra “supersalários” estacionado há três anos no Senado – que, conforme mostrou a Gazeta do Povo, permite que 32 “penduricalhos” continuem sendo pagos acima do teto.
Para se contrapor, as entidades de classe da Justiça usam a mesma linha argumentativa de outras ocasiões. Lembram que a Constituição assegura autonomia administrativa e financeira ao Judiciário, de forma que qualquer limite aos gastos desse Poder só pode ser proposto por ele próprio.
Conforme essa interpretação, iniciativas de contenção vindas do Executivo ou Legislativo violam o princípio constitucional da separação de Poderes. E ferem de morte a autonomia e a independência necessárias ao pleno exercício das funções dos membros do Judiciário, Ministério Público e Defensorias.
O que acontece se o Congresso promulgar a PEC proposta pelo governo? Os manifestos sugerem consequências catastróficas para o sistema de Justiça e até para as contas públicas:
- com a limitação a pagamentos extrateto, cerca de 40% dos magistrados, que já têm condições de se aposentar, poderão optar pela saída imediata;
- o governo terá de repor os quadros por meio de concursos públicos, gerando custos adicionais, e não economia;
- outros profissionais vão deixar o serviço público em busca de melhores oportunidades na iniciativa privada;
- a evasão em massa vai comprometer o funcionamento do Judiciário, que hoje acumula mais de 84 milhões de processos em tramitação; e
- o congestionamento e a morosidade vão aumentar, dificultando o acesso à Justiça, enfraquecendo a confiança no sistema e ampliando desigualdades.
O arrazoado dá a entender que a remuneração extrateto é um alicerce para o bom funcionamento da Justiça brasileira, quase uma condição para o exercício da cidadania.
Gastos da Justiça somam 1,6% do PIB
A despesa nacional com o Judiciário equivale a quatro vezes a média global (0,4% do PIB) e supera tanto a de economias avançadas (0,3%) quanto a de emergentes (0,5%).
Em resposta ao levantamento, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicou artigo reconhecendo que o custo do Judiciário “não é uma questão irrelevante”. Mas logo mudou o foco.
“A indagação correta talvez seja outra: quanto vale o Judiciário?”, questionou. A atuação da Justiça, disse mais adiante, tem “valor inestimável, que não se mede em dinheiro”.
Segundo Barroso, a Justiça brasileira “é, provavelmente, a mais produtiva do planeta”. E juízes “são alguns dos profissionais mais bem preparados do mercado, embora ganhem substancialmente menos do que atores de sucesso no ambiente jurídico privado”.
Para o presidente do STF, “os abusos remuneratórios que se noticiam aqui e ali são graves e devem ser corrigidos, mas não invalidam o quadro geral”. Ou seja, se há algum exagero, é caso isolado, “aqui e ali”.
O doutor em Direito Público e Constitucional Antonio Celso Baeta Minhoto entende que o Judiciário deve mesmo ter independência e autonomia. Mas observa que, embora reivindique a prerrogativa de propor qualquer mudança estrutural ou remuneratória, o Judiciário não toma a iniciativa.
“Nosso Judiciário é historicamente resistente a rever a própria gestão. Não é o único Poder assim, mas não é melhor que os demais. É caro, encastelado e tem uma cultura de proteger seus interesses”, diz. “E aí ficamos num dilema. O Judiciário precisa ter autonomia, para não ficar de pires na mão e sujeito aos demais Poderes. Mas não toma a iniciativa de rever seus gastos e joga com o poder que tem.”
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