Por que a gente come? Os darwinistas dirão que é porque esse é o comportamento “selecionado pela evolução”, aquele que “dá vantagem aos que comem”. Eu já suspeitava de que isso era besteira, pois não há qualquer competição aqui: quem não come não vive muito tempo para contar a história, oras. Além disso, comer demais, muito pelo contrário, não dá vantagem alguma, pois causa obesidade, doença metabólica e diabetes e encurta a vida.
Agora tenho ainda mais convicção de que a gente come simplesmente porque… pode comer. Cravar os dentes naquilo debaixo dos olhos que tem gosto bom e/ou alimenta (na natureza, os dois costumam coincidir) é a resposta padrão do cérebro, o seu default. Não comer alguma coisa, ao contrário, é que exige algum tipo de intervenção.
O que me convenceu foi o artigo recém-publicado na revista Nature pelo grupo do geneticista estadunidense Jeffrey Friedman, da Universidade Rockefeller. Friedman descobriu, 30 anos atrás, que o tecido adiposo do corpo produz um hormônio chamado leptina, que atua no cérebro diminuindo o apetite e a ingestão de comida. A falta de leptina, ou de sensibilidade do cérebro ao hormônio, são as causas mais comuns de obesidade mórbida de origem genética.
Pois Friedman há algum tempo virou, na prática, neurocientista, interessado em destrinchar os mecanismos pelos quais a leptina regula a alimentação. Em seu novo estudo, sua equipe usa uma série de ferramentas genéticas e microscópicas (daquelas que só verbas de um milhão de dólares anuais permitem usar) para ir atrás da conexão entre os neurônios sensíveis à leptina, que ficam no hipotálamo, com os que fazem a mandíbula se mover. Em outras palavras: qual é a conexão entre sentir fome e comer?
A resposta está em um subgrupo específico de neurônios do hipotálamo ventromedial. O hipotálamo é a parte da frente do cérebro que, como o cérebro se curva, acaba situada na sua base, acima da boca. É o hipotálamo que controla toda a fisiologia do corpo. São dezenas de pequenos núcleos, cada um formado por outra dezena de subgrupos de neurônios, todos com funções diferentes, cujos segredos só se revelam para quem tem aqueles milhões em ferramentas genéticas e microscópicas.
A parte do hipotálamo que é sensível à leptina (e também à visão de comida) é o núcleo arqueado. A equipe descobriu na vizinhança, no hipotálamo ventromedial, neurônios que, de um lado, recebem sinais do núcleo arqueado e, do outro, mandam sinais para a região motora do nervo trigêmeo, que comanda ações como morder e mastigar. Pronto: eis a conexão.
Mas a parte mais interessante da história é outra. O grupo mostra que o papel desses neurônios do hipotálamo ventromedial não é fazer morder e mastigar, e sim impedir essas ações —só que isso apenas acontece quando o animal está saciado. Bloqueando esses neurônios, os animais comem como se não houvesse amanhã, e inclusive mordem e mastigam o que aparecer pela frente, como pedaços de madeira em suas gaiolas.
Ou seja: morder é algo que os bichos fazem por default. Aquilo que o cérebro aprende que é comida passa a ser mordido preferencialmente, e a visão de comida é suficiente para disparar a parte do núcleo arqueado que silencia o hipotálamo ventromedial, tirando assim o pé do freio da boca.
Se o que se vê é comida, a resposta padrão do cérebro é… comer, oras. Só não somos todos em formato de bola porque a leptina segura razoavelmente a onda —e porque não temos comida debaixo dos olhos o tempo todo.
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