Um dos primeiros povos a habitar o continente americano tinha uma dieta quase tão carnívora quanto a de um dente-de-sabre, dependendo principalmente de filés de mamute para sua subsistência, sugere um novo estudo. As conclusões, se estiverem corretas, trazem mais peso à hipótese de que caçadores humanos tiveram papel significativo na extinção dos grandes mamíferos da Era do Gelo.
O mais curioso é que os dados sobre consumo de carne vêm do organismo de um indivíduo que provavelmente ainda se alimentava quase exclusivamente de leite. Trata-se de um menino que tinha apenas 18 meses quando morreu quase 13 mil anos atrás, onde hoje é o estado de Montana (noroeste dos Estados Unidos).
Apelidado de Anzick-1 por causa do sobrenome dos donos da fazenda onde seu esqueleto foi achado, o garotinho pertencia à cultura Clovis, a primeira a ter uma distribuição ampla nas Américas após a chegada do Homo sapiens ao continente.
Célebre pelas bonitas pontas de lança de pedra produzidas por seus membros, a cultura Clovis é conhecida dos arqueólogos desde a primeira metade do século 20. Já havia uma associação entre essas pontas de lança e o esqueleto de mamíferos de grande porte, inclusive mamutes e bisões.
Mas, considerando as vastas regiões da América do Norte e a diversidade de ambientes contidos nelas, alguns pesquisadores argumentavam que uma variedade de estratégias de subsistência, algumas mais baseadas na captura de pequenos animais e peixes e na coleta de recursos vegetais, também poderiam ter sido empregadas por esses paleoamericanos.
O possível tira-teima veio da análise do colágeno que ainda subsistia no esqueleto do menino Anzick-1, feita pela equipe de James Chatters, arqueólogo ligado à Universidade McMaster, no Canadá. O colágeno, proteína essencial para a estrutura dos músculos e dos ossos, é usada para datar organismos mortos há milhares de anos pelo método do carbono-14, mas também serve para estimar qual era a dieta de um indivíduo da Era do Gelo por meio de uma “balança” de átomos dos elementos químicos carbono e nitrogênio.
Acontece que variantes desses átomos, chamadas isótopos, podem ser mais “pesadas” ou “leves”, e a proporção dos isótopos depende do tipo de alimento que a pessoa consome ao longo da vida.
Dada a curta vida da criança, ela infelizmente não deve ter tido tempo de se alimentar de quase nada que não fosse leite materno. Contudo, esse leite, é claro, era fabricado no organismo da mãe do menino e refletia a alimentação dela. Isso significa que, feitas as devidas correções associadas ao metabolismo do leite, medir o colágeno nos ossos da criança é uma forma de estimar também o que os adultos comiam.
No trabalho de Chatters e seus colegas, que foi publicado nesta quarta-feira (4) no periódico especializado Science Advances, os pesquisadores compararam o resultado da “balança” de carbono e nitrogênio da criança com a de uma série de outros animais, com diferentes tamanhos e dietas, que viviam na região durante o fim da Era do Gelo.
O interior do noroeste americano, nessa época, apresentava uma rica fauna de mamíferos de grande porte. Além dos bisões, cervos e lobos que ainda existem por lá, havia mamutes, cavalos, camelos (ambos parentes extintos das espécies domésticas de hoje), leões-americanos, ursos-de-cara-estreita e dentes-de-sabre do gênero Homotherium (também conhecidos como dentes-de-cimitarra).
A comparação revelou que, entre todos esses animais, a dieta do povo ao qual o menino pertencia provavelmente era muito parecida com a do dente-de-cimitarra Homotherium. Segundo os cálculos dos pesquisadores, isso significa que, em média, cerca de 40% do que comiam seria carne de mamute. Já os cervos-vermelhos ficariam em segundo lugar na “lista de supermercado” do povo de Clovis, correspondendo a 15% de sua dieta. Mamíferos de pequeno porte equivaleriam a apenas 5% das calorias que ingeriam.
Os dados parecem confirmar a especialização desse grupo de paleoamericanos como caçadores de feras de grande porte. Ainda é cedo para dizer se esse cenário valia para o continente inteiro no fim da Era do Gelo, no entanto.
Ao menos alguns dos primeiros habitantes do Brasil, por exemplo, mostram considerável parentesco genético com Anzick-1, mas parecem ter adotado uma dieta bem mais generalista, comendo animais de pequeno e médio porte e vegetais variados.