Do Alto Rio Negro, no noroeste do Amazonas, um grupo de pesquisadores leva para a academia um conhecimento sobre a natureza e a sociedade que, embora visto como “novo”, é milenar. São cientistas indígenas, de etnias como Tukano e Bará que vêm criando uma nova antropologia da Amazônia —em vez de objetos de pesquisa, os indígenas são protagonistas na produção de conceitos.
Essa nova antropologia começou a se materializar nos anos 2009, com a defesa das dissertações de mestrado de quatro pessoas da etnia Tukano na UFAM, a Universidade Federal do Amazonas: João Rivelino Barreto –o primeiro aluno indígena do programa–, João Paulo Lima Barreto, Gabriel Sodré Maia e Dagoberto Lima Azevedo– a primeira pessoa a escrever e defender uma tese de doutorado na língua Tukano. Os dois últimos morreram precocemente em 2023.
As quatro obras, que integram a coleção Reflexividades indígenas, publicada pelo Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai) da UFAM, fazem uma reflexão a partir do “tripé” ukunse (arte do diálogo) do pensamento Tukano: basesé (benzimentos), barsamori (arte musical) e kehtí (histórias). É a partir desse tripé que se compreende a organização do mundo e a natureza dos seres e das coisas.
“É uma antropologia feita por nós mesmos”, afirma João Rivelino, hoje doutor, que em agosto se tornou o segundo professor indígena da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Não queremos ser formados como conhecedores indígenas, mas transformar-nos antropólogos.”
“Os observados tornaram-se observadores e sujeitos da disciplina”, escreveu o antropólogo Gilton Mendes dos Santos na nota introdutória dos livros da coleção. Professor da UFAM e coordenador do Neai, ele é um dos principais responsáveis pela formação dos antropólogos indígenas, e também um dos autores do livro “Omerõ”, que traz um debate entre os quatro pesquisadores indígenas e quatro antropólogos não indígenas.
A antropologia é a ciência que estuda os seres humanos usando métodos como observação participante, entrevistas e trabalho de campo. Em geral os cientistas que fazem etnografias (pesquisas baseadas na interação direta com as pessoas em seu ambiente natural) em aldeias para estudar e escrever sobre culturas indígenas são antropólogos. Historicamente, no entanto, a antropologia ocidental muitas vezes deturpou saberes indígenas, tratando-os como “mitos”, e foi usada como ferramenta de dominação colonial. Não são raras as críticas a cientistas europeus, estadunidenses ou mesmo brasileiros que, após utilizarem indígenas como objetos de pesquisa, publicam seus estudos sem incluí-los nos créditos, nem voltam às comunidades para apresentar os resultados de suas pesquisas.
Por isso, novas iniciativas de decolonização buscam dialogar e reconhecer o valor das epistemologias indígenas e levá-las para a academia, que só tem a ganhar com isso. Nesse momento de emergência climática e destruição da biodiversidade, os povos indígenas detêm, por exemplo, o conhecimento milenar de como manejar ecossistemas mantendo-os de pé.
Cada povo possui formas particulares de compreensão do mundo, mas, de modo geral, a ciência indígena tem como base uma forte relação com o território, a construção coletiva e a memória. O modelo de conhecimento indígena é complexo, dinâmico, sistemático e anterior ao método da academia. Natureza e cultura não se separam como no pensamento ocidental, e a transmissão do conhecimento é feita pela oralidade, por meio de histórias, cantos e rituais.
“As nossas metodologias estão em nossas aldeias, com nossos pais, nossas mães, nos discursos, nos toques das flautas”, diz Rivelino, que na defesa de seu doutorado, em 2019, apresentou o método da “etnografia em casa”: “É a prática do ouvir, compreender, descrever, interpretar e contextualizar”.
Silvio Barreto, da etnia Bará, também do Alto Rio Negro, é um dos novos antropólogos indígenas. Pesquisador do Neai e doutor em antropologia social pela UFAM, no mestrado ele investigou as transformações pelo basesé nas práticas Tukano sobre concepção, gestação e nascimento. Para isso, entrevistou Francisca Costa Sanches, sua mãe, parteira da etnia Tuyuka. “A metodologia de pesquisa foi adotada em acordo com o costume local, em roda de conversa na calada da noite”, ele escreveu, neste artigo que deriva de sua dissertação.
“Meu papel é criar metodologia para haver diálogo”, afirma Silvio Barreto, “mas na verdade essa metodologia existe há muito tempo. Também há conhecimento nas florestas, montanhas e rios.”
Já João Paulo Lima Barreto, doutor e membro do Neai/UFAM, fez uma etnografia da pesquisa científica com peixes, indo a campo nos laboratórios de pesquisas em ictiologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
“A ictiologia classifica os peixes nas chaves de família, grupo, espécie, tipo, enquanto nós ordenamos os grupos de peixes a partir de espaços: igarapé, lago, rio”, explica Barreto. “Temos nosso modelo próprio de explicar as origens dos peixes, assim como a ciência ictiológica. Nem um nem outro é pior ou melhor, são modelos diferentes.”
Barreto acredita ser possível unir os dois sistemas de conhecimento. “Na medida em que entendemos as diferenças e particularidades entre modelos de conhecimentos, seja científico, seja indígena, nós podemos, sim, dialogar.”
*
Clarice Cudischevitch é jornalista de ciência e gerente de comunicação no Instituto Serrapilheira.
O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, de apoio à ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.