O caso do homem que foi jogado de uma ponte por policial militar, as mortes de um estudante de medicina desarmado e de um homem negro alvejado pelas costas, entre outros casos de violência praticada pela PM, contrariam leis e as próprias regras da corporação.
Além das punições previstas no Código Penal, que dependem de longos processos na Justiça para serem aplicadas, essas situações podem motivar punições administrativas e até a expulsão da corporação.
As condutas desrespeitam tanto o regulamento disciplinar da PM quanto princípios do treinamento recebido pelos policiais na academia militar. Essas normas internas deixam claro que é ilegal agredir quem não oferece risco à vida disse policiais e também descrevem, em alguns casos de forma minuciosa, como o policial deve usar uma arma de fogo e se comportar durante abordagens a suspeitos e veículos.
De forma geral, durante o treinamento da PM, a orientação é que o disparo da arma de fogo só ocorra em último caso, para interromper ou prevenir uma agressão com potencial de levar alguém à morte —seja o próprio policial ou outra vítima.
Essas e outras diretrizes fazem parte do curso “Tiro Defensivo na Preservação da Vida”, mais conhecido como Método Giraldi, usado pela PM paulista desde 1998. O método preconiza o uso progressivo da força. A preferência é pelo diálogo e pela negociação desde o início do atendimento a uma ocorrência que tem potencial de deixar feridos ou mortos.
O treinamento veta, por exemplo, atirar contra um agressor que esteja de costas e fugindo, mesmo que esteja armado. A orientação para esse tipo de caso, segundo o manual do Método Giraldi, é que o policial mantenha-se protegido e empunhe a arma com o dedo fora do gatilho, anuncie sua presença e ordene que o suspeito largue a arma.
“Nossa legislação não admite dar tiro em um sujeito que está fugindo”, explica o coronel reformado da PM José Vicente, membro do conselho da Escola de Segurança Multidimensional da USP. “A menos que ele esteja embarcado num veiculo disparando contra uma viatura, o que é uma situação muito rara.”
Ou seja, o caso em que um PM de folga atirou e matou um homem de 26 anos com tiros pelas costas, após furtar produtos de limpeza, é um desrespeito claro às regras da corporação. O caso ocorreu por volta das 22h40 do dia 3 de novembro no Jardim Prudência, na zona sul da capital.
Já a situação em que um homem foi jogado de uma ponte, além uma infração ao regulamento disciplinar da PM e à lei, contraria as orientações do Procedimento Operacional Padrão (POP) para abordagens policiais. Esses procedimentos descrevem como deve ser a conduta dos policiais nas mais variadas situações, do uso de spray de pimenta ao atendimento de roubo a banco.
O POP para abordagens a motocicleta descreve que o suspeito deve ser orientado pelos policiais, de forma respeitosa, a se posicionar em frente à moto para que eles revistem o veículo e o motociclista.
Só em caso de flagrante os PMs devem empunhar as armas em direção ao suspeito e ordenar que ele ajoelhe, cruze as pernas e mantenha as mãos na cabeça —e só então ser direcionado à viatura da polícia e levado a uma delegacia.
Se o suspeito desobedecer alguma ordem, os policiais devem considerar a possibilidade de ele portar alguma deficiência ou não compreender português. Se houver resistência, a orientação é chamar reforço. Se reagir de forma agressiva mas não estiver armado, a orientação é usar equipamentos de baixa letalidade —spray de pimenta, cassetete e arma de choque.
Se nada de ilícito for encontrado —conforme a descrição do caso que acabou com o motociclista arremessado da ponte—, o procedimento padrão é agradecer e liberar a pessoa abordada.
O uso desnecessário da arma de fogo também ocorreu na morte do estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, 22. Conforme versão oficial, o rapaz parecia agressivo e desferiu um tapa no retrovisor da viatura quando os policiais tentaram abordá-lo.
Ele fugiu e entrou num hotel em seguida. O estudante então reagiu com empurrões e tapas quando um dos policiais tentou agarrá-lo, já com a arma em punho. Os PMs que atenderam o caso tinham arma de choque, o chamado taser, mas não usaram. Acosta estava desarmado.
´k, Uma câmera de segurança capta um violação flagrante do que é preconizado em treinamento. O policial só deve retirar a arma do coldre e apontar a qualquer pessoa se ela estiver armada e ameaçando a vida de alguém.
Outra infração teria ocorrido na morte do menino Ryan da Silva Andrade Santos, 4, em Santos. Nesse caso não há filmagens do momento em que ele foi atingido, mas vários moradores confirmam a mesma versão.
Policiais teriam disparado rajadas de tiros em direção a moradores do Morro São Bento, no momento em que várias crianças brincavam na rua, logo após abordar dois adolescentes numa moto —PMs alegaram que os adolescentes teriam disparado contra policiais, o que moradores negam.
“Não se dispara em agressor que esteja no meio do povo ou na mesma linha de tiro de pessoas inocentes; aguarda-se melhor oportunidade; chama-se apoio; faz-se o cerco”, diz o manual da PM.
Entre as infrações graves previstas no regulamento disciplinar da corporação estão usar força desnecessária no atendimento a ocorrências, deixar de garantir a integridade física de qualquer pessoa detida e agredir —física, moral ou psicologicamente— qualquer pessoa sob a guarda da polícia. As punições vão desde a detenção do PM à expulsão.
“Por que o policial decide não agir de acordo com o padrão correto, pelo qual foi treinado? Isso é uma questão de disciplina, de aprender e se sentir obrigado a cumprir as regras”, diz o coronel José Vicente. “Nós estamos vivendo clima organizacional em que há um discurso político para que a PM vá para o confronto, vá enfrentar ‘o crime organizado’ e uma serie de outras medidas que diminuem o controle policial.”