Cláudia é uma mulher de 55 anos, moradora do Rio de Janeiro, batizada, crismada e casada na igreja católica. Ao ser perguntada sobre sua religião, Cláudia não vacila: “Sou católica apostólica romana”. Na última pesquisa do Censo, foi assim que Cláudia respondeu ao IBGE.
Apesar disso, conforme identifiquei em pesquisa que coordeno, Cláudia pertence a um grupo cada vez maior de brasileiros que mesmo se declarando católicos passaram a frequentar esporadicamente cultos evangélicos: “Eu gosto de frequentar a missa, mas não qualquer missa, com qualquer padre. Tem um padre de uma igreja que gosto de ir que é jovem, ele faz uma homilia maravilhosa e canta maravilhosamente bem. Ele se assemelha muito a um pastor de uma igreja evangélica. Acontece que eu também adoro o louvor da igreja evangélica, a forma como eles louvam, a forma como eles oram”, disse Cláudia em entrevista.
Casos como os de Cláudia estão se multiplicando pelo país. São católicos que se mostram abertos ao universo evangélico e passam a frequentar cultos porque gostam do pastor, pela proximidade da igreja de sua casa, para acompanhar amigos evangélicos.
Durante as últimas quatro décadas, pesquisadores da religião analisaram relatos desse tipo como processos de conversão. Segundo essa interpretação, se esperaria que, pouco a pouco, Cláudia deixasse de ser católica para se tornar evangélica. No entanto, pessoas como Cláudia não “completam” a conversão. Elas permanecem se declarando católicas e, ao mesmo tempo, frequentam cultos evangélicos.
Historicamente, o Brasil é um terreno fértil para o que os especialistas chamam de múltiplos pertencimentos religiosos. São comuns os relatos de pessoas que se autodeclaram católicas, mas eventualmente tomam um passe no centro espírita ou participam de uma festa em algum terreiro de umbanda.
No entanto, parecia haver uma separação mais rígida entre católicos e evangélicos, que impedia a circulação de uns nos cultos de outros. É isso o que está se transformando. Recentemente, Marília César apontou para um fenômeno paralelo, o de evangélicos se convertendo ao catolicismo. Fato é que se antes esses grupos eram vistos como água e óleo, elementos que não se misturam, casos como o de Cláudia nos desafiam.
As hipóteses para explicarmos esse fenômeno são múltiplas, a começar pelos problemas que noções rígidas de pertencimento religioso produzem. Quando se descreve estatisticamente a religião dos brasileiros, conforme os dados do Censo de 2010, afirma-se, por exemplo, que 64,6% da população é católica, enquanto apenas 22,2% são evangélicos. O que esses números escondem é que as práticas religiosas das pessoas são muito mais fluidas e dinâmicas do que sua identidade religiosa nos sugere.
Estatisticamente, Cláudia é católica, mas, ao observarmos suas práticas de perto, o caso é mais complexo. Seu relato também serve como um alerta metodológico para nos lembrar dos limites de tratarmos as transformações religiosas no Brasil somente por meio de números. Trata-se de um alerta antropológico: além das estatísticas, é a observação do cotidiano o que nos faz compreender a realidade. Mas podemos ir além deste alerta.
Católicos que frequentam cultos evangélicos podem ser interpretados de duas maneiras. Na primeira delas esse fenômeno reforça as características do catolicismo brasileiro —um catolicismo misturado. Nesse caso, a novidade de casos como o de Cláudia seria a inclusão de cultos evangélicos entre as atividades que católicos esporadicamente frequentam sem que isso signifique abandono de sua identidade religiosa. Conforme essa leitura, o catolicismo não estaria perdendo espaço, mas sim, ampliando sua força centrípeta, absorvendo outras práticas religiosas.
Já noutra chave explicativa, isso se explicaria porque cultos evangélicos teriam se integrado de tal modo no país que frequentá-los deixou de ser uma atitude excepcional. Assim como conhecer e ouvir música gospel deixou de ser marca exclusiva dos evangélicos, participar de cultos também o teria sido.
Seja por uma ou por outra interpretação, a constatação é que falamos pouco sobre catolicismo. E motivos para dar atenção a esse campo não nos faltam: foi com argumentos católicos que o STF optou por manter os crucifixos nas paredes das instituições públicas do país, foi um padre católico o único indiciado no processo que prendeu os golpistas de 2022, a PEC que pode acabar com aborto legal no Brasil recebeu apoio de católicos.
O maior país católico do mundo precisa se olhar um pouco mais no espelho.