O Projeto de Lei (PL) 2.338/2023, em análise no Senado para criar o marco legal para a inteligência artificial (IA) no Brasil, deflagrou nova batalha entre governo e oposição em torno da garantia de liberdade de expressão. A possibilidade de delegar a um órgão federal a fixação de regimentos e critérios para conteúdos nas redes sociais, independentemente do Congresso, despertou temores de ingerências políticas.
Após ser lido na semana passada por Eduardo Gomes (PL-TO), seu relator da Comissão Temporária de Inteligência Artificial (CTIA), o texto de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), deve ser votado nesta terça-feira (3) pelo colegiado e levado ao plenário do Senado na quinta-feira (5).
A proposta que promete equilibrar o incentivo à inovação com a proteção de direitos fundamentais sofre críticas de setores da sociedade, parlamentares da direita e grandes empresas de tecnologia, chamadas big techs, que temem ficar sujeitas ao controle estatal.
A recente aceleração do encaminhamento do PL 2.338/2023 por Pacheco é vista por especialistas e entidades como risco para a livre circulação de opiniões e ideias nas plataformas digitais.
A ONG Nas Ruas, por exemplo, lançou campanha pedindo a eleitores que pressionem senadores a rejeitar a proposta, sobretudo por enquadrar as redes como sistemas de “alto risco”. Essa classificação abriria espaço para maior controle do Executivo, por meio de decretos e regulamentações.
Artigos do projeto colocam atividade das plataformas na mira do Planalto
Os artigos 14 e 15 do texto de Gomes são os mais contestados. O primeiro inclui atividades com distribuição automatizada de conteúdo na categoria de “alto risco”, enquanto o segundo delega à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) a decisão sobre o que configura tal risco, com critérios que incluem impactos no processo democrático e no pluralismo político.
A regulamentação e a governança pelo ANPD é vista por especialistas como preocupante caso não exista transparência nas regras e no alcance. Para eles, o projeto de regulamentação da IA precisa focar nos usos e aplicações e a autoridade competente deveria publicar uma lista consolidada de usos considerados de alto risco definidos por autoridades setoriais, para tornar as regras mais eficientes e alinhadas a riscos reais.
O marco legal da IA no Brasil visa definir limites e permissões para o uso da tecnologia, que vão desde buscas na internet em texto ou imagens até criação de músicas e textos literários. Para isso, o PL indica como órgão fiscalizador o Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA), coordenado pela ANPD.
Críticos, como o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), denunciam que o texto traz de volta elementos do arquivado PL 2.630/2020, conhecido como PL da Censura ou PL das Fake News.
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Para especialista, tutela sem Legislativo abre brecha para intervenções indevidas
O jurista André Marsiglia, especializado em liberdade de expressão, entende que a presença dos artigos 14 e 15 da proposta afetam diretamente este tema por tratarem como de “alto risco” a circulação online de informações. “Ao entender que até conteúdos moderados são arriscados, o texto sujeita as redes a intervenções indevidas”, explicou.
Para o especialista, a possibilidade de que, sem qualquer contato com legisladores, normas e diretrizes para o que é publicado nas redes sociais sejam criadas pelo Executivo, a regulamentação do setor deixa de ser objeto de legislação para ser uma simples tutela estatal.
Em resumo, as redes sociais, que integram os sistemas de alto risco no projeto, ficariam sujeitas à supervisão estatal, com normas estabelecidas por decretos de governo, segundo os críticos da proposta. A abordagem preocupa também pelo potencial aumento da burocracia e dos custos para a cadeia econômica de IA.
Relator do PL provoca irritação nos bastidores com colegas da oposição
Mesmo com alterações no relatório de Gomes, que suavizaram aspectos relacionados à inovação, a oposição critica o agravamento do controle estatal sobre as redes e cobra a retirada de trechos que consideram excessivamente intervencionistas.
O relator, embora pertença ao maior partido de oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), defende que a proposta mantém o equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção de direitos fundamentais.
Desde maio de 2023, a CTIA analisou oito projetos de lei relacionados à IA, incorporou mais de 140 emendas e recebeu cerca de 2 mil páginas de contribuições da sociedade.
O relatório atual também inclui exceções à aplicação da lei, como em casos de uso não comercial ou atividades de teste e desenvolvimento. Garantias de proteção aos direitos autorais e propriedade intelectual foram fortalecidas, prevendo remuneração para autores cujas obras sejam usadas em bancos de dados de IA.
Projeto que cria classificação de risco dos sistemas de IA é nova batalha política
O PL divide os sistemas de IA em “alto risco”, “risco excessivo” e “baixo risco”. Sistemas de “alto risco”, como aqueles utilizados em seleção de candidatos ou biometria, deverão ser supervisionados rigorosamente. Tecnologias de baixo risco, como ferramentas de tradução ou correção ortográfica, terão menos restrições.
Grandes plataformas digitais pressionam contra a inclusão das redes sociais como atividade de alto risco, mas o governo considera o trecho inegociável. A regulação da IA reflete então uma grave disputa política. O Palácio do Planalto considera o momento favorável para aprovar a proposta, após vitória recente no Senado com o PL 2628/2022, que amplia a proteção digital para crianças e adolescentes.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) está analisando esta semana a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que trata da retirada de conteúdos das redes e da sua responsabilização pelas postagens dos usuários, o que pode alterar o cenário jurídico das plataformas e a forma como elas operam.
Presidente de comissão espera pressão maior das plataformas na Câmara
O presidente da comissão especial, senador Carlos Viana (Podemos-MG), informou que regimentalmente não cabe mais pedidos de vista ao projeto, porém os senadores poderiam apresentar emendas ao relatório final até esta segunda (2). Ele avaliou que as big techs elevarão a pressão por mudanças quando o texto chegar à Câmara.
De acordo com o presidente da CTIA, o governo participou de todas as reuniões sobre a proposta. A importância de avançar sobre as redes para o Palácio do Planalto ficou evidente nas reuniões que fecharam o apoio de diferentes ministérios ao relatório. Executivo e STF têm feito nos últimos anos o mesmo discurso pró-regulação das redes sociais.