Eu nunca tinha tido burnout. Pensando bem, provavelmente já tenha tido, mas ninguém chamava assim naquela época.
Foi em agosto deste ano, depois de umas férias que não foram férias, que não ficou dúvida. O esgotamento físico, mental, emocional, era tão grande que não me deixava dormir. E no escuro eu seguia trabalhando dentro da minha cabeça. Trabalhando e me martirizando por seguir trabalhando, chorando pelo cansaço, pelo descontrole, pelo dia que chegaria antes que eu pudesse pregar os olhos.
Foi nadando nesse lodo lamacento que um dia recebi a visita dos meus pais. A gente já tinha combinado a vinda antes mesmo de eu ter dado um nome àquilo que eu estava vivendo. Mas hoje posso afirmar com absoluta certeza que aquela estada foi o início da cura.
Eu saí de casa com dezessete anos. E na mesma velocidade que aprendi a cuidar de mim, eles desaprenderam. Por muito tempo, o desaprender deles foi um alívio, a carta de independência para a adolescente que queria sempre mais do que eles queriam permitir. Seguimos sempre próximos, mas quem cuidava de mim agora era eu.
Me tornar mãe naturalmente acentuou essa dinâmica, essa mudança na hierarquia das nossas relações. O núcleo familiar deslocado para mim, meu marido, meus filhos, eu envolta na neblina da maternidade, do amor que (como eles sempre disseram e eu não acreditava) era de fato maior do que aquele que senti e sinto pelos meus próprios pais. E eles como personagens adjacentes, coadjuvantes, sem a responsabilidade do cuidado, gozando do privilégio de serem apenas o vovô e a vovó.
Eis que eles aterrissaram aqui e me encontraram caída. Figurativamente, claro, porque mãe não tem direito de cair. Me vendo no chão, eles me acolheram, lamberam minhas feridas e cuidaram de mim e das coisas ao meu redor.
Quando, depois de quatro dias, eles pegaram o trem de volta para casa, eu já não chorava no banho e conseguia dormir uma noite toda.
Quando tudo isso aconteceu, eu não soube direito colocar em palavras. Só soube sentir que estava melhor e que o ponto de partida tinha sido aquele fim de semana. Foi só quando ouvi Lorena Portela falar sobre seu novo e espetacular livro “O Amor e Sua Fome” que a ficha caiu.
O segundo romance de Lorena conta a história de Dora, uma menina que, ainda criança, teve negado aquele amor que acreditamos ser incondicional, infinito e inerente à condição humana: o amor de quem nos botou no mundo. No lugar dele, Dora carrega um buraco, uma fome que não passa.
Eu engoli o livro numa mordida só, compadecida do desamparo de Dora, encantada com sua disposição para o amor. Mas foi ouvindo Lorena falar sobre o livro num podcast que consegui me enxergar.
“Eu não quero ter filhos”, ela disse sobre a pergunta que é feita a toda mulher em algum momento da vida. “Mas tem uma pergunta que a gente se faz muito pouco: e quem quer ser filha? E quem quer ser filha de alguém e não consegue reivindicar isso?”
Dora não pôde reivindicar seu lugar de filha. Eu não precisei. Por isso só tenho a agradecer.
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