Das coisas desimportantes que um grupo razoável de brasileiros leva a sério, as provas de corrida de rua merecem consideração.
A rumorosinha bolhinha dos corredores é unívoca ao criticar provas que falham no cálculo da distância percorrida, não oferecem água a cada meio quilômetro e, heresia das heresias, têm regulamentos extravagantes.
Foi o caso da maratona de Sorocaba, que, por proibir que os corredores usassem fones de ouvido, expôs seus organizadores à mais pesada das sentenças, como se eles fossem, digamos, o governo federal, e o governo federal quisesse, vai, eliminar os subsídios dados a um setor econômico para sobreviver à pandemia. E a pandemia, claro, de velho acabada.
Não ocorreu aos críticos que o arbítrio dos legisladores sorocabanos era algo apenas para inglês ver? Afinal, como fiscalizar a regra?
Claro que ocorreu, mas não dava para perder a resenha.
Sei que prego no deserto, porque no Brasil corredor adora ver nas provas o clone de Elvis, ouvir o locutor de sempre a falar as platitudes de sempre, desviar de enxames de fotógrafos saídos sabe Deus de onde e levar para casa todo panfleto que ofereça 5% de desconto sobre qualquer serviço que ele jamais vai utilizar.
Mesmo assim, faço a pergunta retórica: por que diabos alguém privilegia a corrida cara e muvucada de domingo a aquela de graça da manhã ou do fim de tarde de um dia ordinaríssimo qualquer?
Ao apostar tantas fichas no fim de semana, o adepto talvez deixe passar batido a beleza, a magia daquilo que as pessoas tendem a chamar de “treino”.
A valorização da prova, e não tanto do “treino”, é muito importada da mentalidade dos educadores físicos, que gostam de falar em “objetivos” e que costumam oferecer a seus pupilos missões ao longo da semana com o fito de que eles “performem” no domingo. O chamado cânone.
Não que não seja muito indicado fazer uma bateria de tiros no treino intervalado da quarta-feira, que muito provavelmente vai tornar o corredor estranhamente melhor para o endurance. Mas a questão é saber fruir.
Saber fruir —não disse saber sofrer.
Hormônios e endocanabinoides liberados durante a prática da atividade física, e que seriam responsáveis pelo tal “barato da corrida” (em inglês é melhor: “runner’s high”), são descarregados em qualquer ocasião, não apenas na prova em que o clone do Elvis faz sua “cameo”. O problema é que, como com a cannabis recreativa, a gente mal sente o barato, diz que “não bateu”, mas é justamente na sensação de bem-estar que ele se manifesta.
(Normalmente você precisa, eis o paradoxo, parar de correr para notar o barato).
A atividade física, e a corrida é campeã nisso, é a melhor maneira de fazer você fruir o lugar em que está. Se esse lugar é a natureza, um parque, as ruas vazias e arborizadas da USP ao entardecer, nenhum carro por perto, passarinhos a cantar, cigarras a ciciar, um narrador meio endocanabinoiado a escrever, meu Deus do céu. Dá até para conceber viver mais um ano em São Paulo.
Nessa hora, tudo o que você menos precisa são seus fones de ouvido.
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