Instituição financeira privada mais antiga do país, o sistema de crédito cooperativo teve início em 1902, na Serra Gaúcha, e demorou 105 anos para atingir a marca de 1 milhão de cooperados. Na última década, no entanto, o modelo deslanchou: atualmente, 1 milhão de novos sócios são agregados a cada ano somente pelo Sicredi, o pioneiro, que começou como Caixa Rural de Nova Petrópolis.
Embora o crescimento seja notável e até evoque um “milagre econômico”, o índice de brasileiros sócios de cooperativas de crédito ainda é relativamente baixo, quando comparado a países de destaque no modelo associativista. Por aqui, as credit unions detêm menos de 10% do mercado bancário, enquanto o índice chega a 15% nos Estados Unidos e 40% na França.
Depósitos são segurados pelo Fundo Garantidor do Cooperativismo
Em termos práticos, ao se filiar a uma cooperativa de crédito a pessoa se torna sócia aos resultados do operador financeiro. Assim, anualmente o correntista pode ser contemplado com a distribuição de sobras – termo utilizado para os lucros. Na eventualidade de quebra de uma cooperativa, os associados têm as mesmas garantias do sistema bancário tradicional. O Fundo Garantidor do Cooperativismo de Crédito cobre investimentos até R$ 250 mil por cliente.
Um fator-chave para destravar o crescimento das cooperativas de créditono Brasil, que chega a 20% ao ano, teria sido o fim dos “não podes”. Antes da Constituição de 1988, o setor era regulado por uma série de negativas. Em artigo sobre o tema, o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues recordou como funcionava: “Não podia ter talão de cheques, não podia fazer aplicação financeira, não podia receber pagamentos de taxas e tributos, não podia ter filial de agência e não podia ter um banco cooperativo. Eram tantas as limitações que não havia jeito deste movimento crescer”.
Após a Constituição, as cooperativas de crédito passaram a ser vistas como estratégicas para inclusão financeira, levando serviços a áreas pouco atendidas pelos bancos convencionais. No ano passado, elas chegaram a 97 novos municípios, totalizando presença em 3.177 cidades. Enquanto isso, os bancos reduziram sua presença, deixando de atender 32 localidades. Em 200 municípios brasileiros, o único serviço bancário disponível fisicamente é uma agência do Sicredi.
Brasil saltou do 16º para o 3º lugar no ranking global do cooperativismo de crédito
Sicredi e Siccob são as duas maiores cooperativas centrais de crédito do país. O Sicredi lidera em ativos financeiros (R$ 386 bilhões) e é o segundo maior operador do crédito rural, enquanto o Sicoob reúne o maior número de pontos de atendimento (3,1 mil), ficando em segundo lugar quando o ranking inclui os bancos tradicionais
Com 18 milhões de associados, o sistema cooperativo de crédito brasileiro ganhou relevância mundial. Há dez anos, o país ocupava a 16ª posição no ranking global, em número de filiados. Hoje, está no terceiro lugar.
“É interessante reconhecer que dos 8 milhões de membros acrescentados no ano passado (globalmente), o Brasil respondeu sozinho por mais de 2 milhões. Já detém o terceiro maior movimento de cooperativas de crédito, em termos de associados, com quase 19 milhões de pessoas. Só os Estados Unidos e a Índia possuem números maiores do que esses”, sublinha Elissa McCarter LaBorde, presidente do Conselho Mundial das Cooperativas de Crédito (WOCCU). “Isso é importante para uma organização cuja missão é promover a inclusão financeira e fomentar comunidades mais igualitárias e resilientes ao redor do mundo”, acrescenta.
Muita gente ainda desconhece como funciona o cooperativismo de crédito
Dentre executivos do setor, uma frase comum é a de que o maior concorrente das cooperativas não são os bancos, mas o desconhecimento da população. Uma pesquisa feita pelo Sicredi em 2023 apontou que 45% dos brasileiros já tinham ouvido falar da marca. Mas apenas 10% sabiam do que se tratava.
O professor de Finanças da FGV EAESP, Fábio Gallo, concorda que o grande público não entende direito como funciona uma cooperativa de crédito e seus benefícios. Ele mesmo diz que passou a compreender melhor o conceito quando fez parte da Crediprodesp, em São Paulo.
“A ideia que se tem, e isso é uma imagem minha, é de que a cooperativa é uma coisa de comunidade, de agricultores, que se autofinanciam. Mas não é só isso. Eu, quando participei, achei excelente porque você contribui com o banco, consegue taxas menores, entre aspas ‘é sócio de um banco’. Mas fiquei mais contente ainda quando chegou no final do período e teve distribuição de lucro, reduzindo os valores que eu havia pago no financiamento de um carro. As pessoas não conhecem esse lado”, sublinha Gallo.
Tratamento de sócio
A empresária Patrícia Freder, que mantém um negócio on-line de venda de semijoias, está associada ao Sicredi Campos Gerais e Grande Curitiba há apenas dois meses. Abriu uma conta por sugestão da irmã. “Hoje eu gasto cinco vezes menos de tarifa do que eu pagava em um banco, e umas dez vezes menos do que em outro”, revela.
Para Patrícia, contudo, o diferencial não está nas tarifas baixas e vantagens financeiras. Ela diz que realmente se sente sócia do banco ao resolver pendências por aplicativos de conversa, participar de rodadas de negócio com outros associados ou acompanhar uma assembleia para prestação de contas. “Muitas vezes você vai a um banco e nem café eles te servem. Eu vi que a experiência do cooperativismo realmente é muito diferente”, relata.
Impulso pela propaganda boca a boca
Para a analista de Relações Institucionais da Organização das Cooperativas do Brasil (OCB), Feulga Abreu dos Reis, os brasileiros, de fato, ainda estão descobrindo o modelo de negócio cooperativista para serviços bancários. Nesse contexto, a propaganda boca a boca é decisiva para atrair novos cooperados.
“Temos muito ainda a crescer. O cooperativismo está ali nos municípios menores, e a gente tem percebido esse movimento nos últimos anos para os grandes centros, e para as regiões Norte e Nordeste. Este é o desafio do cooperativismo e do sistema OCB. Acredito que o crescimento na casa dos dois dígitos tende a ser uma frequente”, sublinha Feulga.
Outro marco divisório na história do cooperativismo de crédito brasileiro, e decisivo para sua expansão, ocorreu em 2007. Foi quando o Banco Central editou a Resolução 3.442. Essa norma permitiu a livre admissão às cooperativas de crédito, independentemente de vínculo com classe profissional ou segmento econômico.
Maior “riqueza” está na redução da desigualdade
Não existem banqueiros nem milionários na pequena Nova Petrópolis, de 20 mil habitantes, onde nasceu o cooperativismo de crédito no Brasil há mais de cem anos. Deve-se ao padre suíço Theodor Amstad a proeza de unir as escassas economias de colonos italianos e alemães debaixo de uma mesma instituição financeira comunitária. A riqueza gerada pela iniciativa, como prega o ideal cooperativista, se espalhou no tempo e no espaço.
“É óbvio que em outros lugares vamos ter muitas pessoas que formaram mais riqueza, sozinhas, do que todos nós juntos aqui. Mas nesses outros lugares tem uma coisa que aqui não tem: desigualdade”, sublinha Paulo Cesar Soares, gestor da Casa Cooperativa de Nova Petrópolis, uma fundação-museu que preserva a história do cooperativismo de crédito no Brasil.
“Aqui vivemos numa sociedade próspera, onde todo mundo cresce e tem as mesmas oportunidades. Estamos entre as 100 cidades mais educadas do mundo. A gente aprendeu o valor do dinheiro, mas, mais do que isso, aprendemos a ser um povo educado e de altos valores de integridade, que transformaram nossa sociedade”, destaca Soares.
Potencial para 15% de participação no sistema financeiro nacional
No ritmo atual de crescimento, e com seu modelo de negócio cada vez mais conhecido pelos brasileiros, até onde vai o potencial de expansão das credit unions no país?
“É uma incógnita, mas existe uma possibilidade de crescimento muito grande. Eu chegaria a afirmar que é fácil imaginar esses mesmos 15% de participação do mercado norte-americano, ou até um índice superior. Também porque o sistema financeiro brasileiro é extremamente robusto, com uma capacidade tecnológica e de inovação, como mostra o pix, de excelência. E nesse ambiente todo você coloca uma estrutura de cooperados mais barata, cedendo crédito com mais força e menores taxas, com certeza há uma capacidade de crescimento e importância muito grande para a economia brasileira como um todo”, aponta Gallo, da FGV EAESP.
Em 2024, o Sicredi, que começou lá atrás como Caixa Rural de Nova Petrópolis, alcançou um feito que faz jus aos ideais sonhados pelo padre suíço Theodor Amstad e pelos pioneiros alemães e italianos. A cooperativa foi escolhida como melhor empresa para trabalhar no Brasil, conforme o ranking do Great Place To Work (GPTW) 2024.
*O jornalista viajou a Nova Petrópolis para o 9º Encontro de Jornalistas e Formadores de Opinião a convite do Sicredi.