Quando tornou-se a pandemia que parou o mundo entre 2020 e 2022, a Covid-19 afetou as pessoas de formas diferentes: enquanto muitas se recuperavam ao final de algumas semanas, outras desenvolviam complicações graves, muitas vezes mortais. Ao mesmo tempo, uma outra pandemia silenciosa começava também a emergir. Havia um outro grupo de pessoas que, inesperadamente, não se recuperava da infecção inicial no tempo esperado, o que se veio mais tarde a denominar de long Covid (Covid longa, em português).
O termo foi proposto por grupos de pacientes que incluíam investigadores, médicos e profissionais de saúde que não viam melhora nos seus sintomas e partilhavam as suas experiências nas redes sociais. Muita da atenção dada à Covid longa foi fruto deste trabalho de divulgação e promoção do tema.
Num curto espaço de tempo, o surgimento de milhões de casos de Covid longa impulsionou a investigação nesta área e chamou a atenção da mídia e órgãos políticos. Mas ainda há muito que não se sabe sobre esta doença. Embora algumas pessoas se recuperem, muitas pessoas continuam doentes, sendo algumas desde 2020.
A Covid longa, paradoxalmente, favoreceu as doenças crônicas associadas a infecções que vinham sendo ignoradas até então. De fato, doenças ou síndromes como a encefalomielite miálgica/síndrome da fadiga crônica (EM/SFC) receberam pouca atenção da comunidade científica e política durante décadas.
Trata-se também de uma síndrome multissistêmica, muitas vezes decorrente de infecções e cujos sintomas em alguns casos podem se parecer com a Covid longa. São ainda doenças que chegaram a ser, por vezes, contestadas, com queixas dos doentes descartadas como se fossem “psicológicas” e estes deixados sem acompanhamento adequado.
Apesar da maior atenção dada à Covid longa e doenças como as crônicas EM/SFC atualmente, ainda não existem tratamentos validados ou cura e muitos doentes são deixados sem respostas.
As pessoas com Covid longa, síndromes ou doenças crônicas invisíveis enfrentam inúmeros desafios tangíveis, como a dificuldade em obter um diagnóstico ou acompanhamento das suas doenças devido ao desconhecimento de alguns profissionais de saúde, falta de testes de diagnóstico e tratamentos validados, despesas extra com medicamentos e tratamentos, obstáculos à educação. Há também o aspecto da empregabilidade, afetada pela redução da capacidade de trabalho ou mesmo incapacidade para trabalhar e dificuldades de acesso aos benefícios sociais.
Porém, as lutas das pessoas com Covid longa vão para além destas dificuldades concretas, pois muitos enfrentam lutas invisíveis no seu dia a dia. A Covid longa é muito disruptiva, causando mudanças por vezes abruptas ao estilo de vida. A doença pode afetar diversos sistemas corporais, incluindo neurológico, cardiovascular, respiratório e manifestar-se numa série de sintomas, muitos não específicos, como a fadiga, dor, névoa cerebral (brain fog), enxaquecas, entre muitas outras manifestações que podem ser muito debilitantes e incapacitantes, dependendo do grau de severidade.
Os sintomas também podem flutuar, variando a cada mês, semana ou até no mesmo dia, o que torna a doença imprevisível e a sua gestão muito desafiante.
As mudanças na capacidade energética e funcional também desafiam a própria identidade, isto é, a forma como as pessoas se definem ou as coisas que valorizam em si mesmas. Os papéis sociais que desempenhavam, por exemplo, nas suas famílias podem mudar drasticamente com a dificuldade ou até impedimento de cuidar dos filhos por causa dos sintomas.
Crianças podem deixar de conseguir ir à escola. Muitos doentes deixam de trabalhar ou precisam fazer alterações no horário de trabalho. Como passamos a maior parte da nossa vida adulta no trabalho, isto pode ter um impacto muito profundo na organização do dia a dia e na forma como nos vemos.
Preconceitos e isolamento
Há um certo sentimento de perda, um luto pelas partes da vida que foram perdidas para a doença que pode ser profundamente disruptivo, como se a vida fosse interrompida e a vida após a doença fosse separada da que se vivia anteriormente. Aqui o acompanhamento psicológico pode ser de grande importância para ajudar a processar e integrar as experiências.
O isolamento social e a solidão são comuns, e guardam relação com sintomas como a fadiga, dor e disfunção cognitiva, assim como o desconhecimento e incompreensão das pessoas que rodeiam as (os) doentes.
As pessoas com a Covid longa e outras doenças crônicas invisíveis também enfrentam estigmas e rejeição social muito potencializados pela falta de informação dos seus entes queridos, público em geral e até profissionais de saúde que, por vezes, contestam estas doenças descartando os sintomas como se fosse ansiedade ou outros problemas do foro psicológico.
Algumas pessoas acabam por experienciar gaslighting, que acontece quando as nossas experiências são desacreditadas pelos outros, quando “reescrevem” a nossa realidade. Isso pode ocorrer não só nos círculos sociais da pessoa como também em um contexto de saúde, o que pode ter graves consequências como evitar procurar ajuda médica.
A Covid longa, a EM/SFC e outras doenças crônicas invisíveis impactam os indivíduos que as desenvolvem, mas também as suas famílias e amigos, bem como sistemas de saúde, economia e sociedade em geral. Por tudo isso, há razões de sobra para que sejam feitos esforços para combatê-las e cuidar dos doentes.
As redes sociais e outros tipos de comunicação online poderão ajudar os doentes a manter contato social. No entanto, caberia a nota de que estes grupos devem ser apropriados para a pessoa em questão – por exemplo, algumas pessoas poderão dar-se melhor em grupos que as empoderem, outras onde poderão ter espaço para desabafar e partilhar sintomas.
Por outro lado, os sintomas da Covid longa não são necessariamente perceptíveis exteriormente, o que dificulta a compreensão. Seguramente, nem todos os amigos e familiares saberão lidar com as flutuações da doença ou compreenderão cancelamentos de planos de última hora nos dias em que as (os) doentes se sentem pior.
Na condição de pessoa com Covid longa e pesquisadora na área de psicologia social, onde estudo preconceito, exclusão/inclusão social, assim como da minha experiência no acompanhamento de pessoas com doenças crônicas, posso afirmar ainda que todos podemos ajudar a melhorar a vida de quem tem esta ou outras doenças crônicas invisíveis ao ajudar na partilha de informação de qualidade e com ajuda prática no dia a dia. E, acima de tudo, todos podemos apoiar as lutas por políticas públicas mais inclusivas para que estes doentes não sejam deixados para trás.
Publicado originalmente no The Conversation