Duas leitoas, uma dúzia de galinhas, uma horta. No quilombo de Bom Jesus dos Pretos, no município de Lima Campos (MA), esse foi o acordo firmado entre a gigante do gás Eneva e os moradores que vivem sobre o solo de onde a empresa extrai seu combustível fóssil. É uma forma de compensação socioambiental, para oferecer à população uma fonte de geração de renda e trabalho.
O Quintal Produtivo, como o programa é batizado, foi iniciado em 2021 e entrou no rol das ações da empresa para fazer um gesto às 135 famílias de comunidades quilombolas da região, lugar onde apenas alguns moradores são agraciados por uma remuneração mensal da Eneva, quando têm seus terrenos diretamente cortados por gasodutos subterrâneos ou poços de exploração.
Quando isso acontece, o local onde a tubulação passa tem de ficar isolado. Um corredor com cerca de 20 metros de largura é aberto e coberto por capim. Ali fica proibida a plantação. Piquetes de concreto são fincados no chão, sinalizando os limites. Se o encanamento não passa pelo terreno, não há pagamento.
Ao ser contemplado com seu quintal produtivo, o morador tem que escolher uma entre as três opções: porco, galinha ou horta. Quatro anos depois de o programa ter sido implantado, muitas famílias reclamam que nem sequer receberam as pequenas estruturas de concreto e arame. Outros relatam que nunca receberam os animais prometidos.
Nessa lista de indignados está João Macenas Silva Santos, 69, aposentado, que vive no quilombo de Bom Jesus dos Pretos.
“Nunca veio nem um leitão. Eu nem estou querendo mais. A promessa era entregar duas leitoas e a comida [ração] pra seis meses. Não se falou mais nisso. Estou injuriado aqui, ninguém liga pra nada”, diz Santos.
Vizinha de Santos, a aposentada Maria das Graças Paiva da Silva também reclama das condições do galinheiro e dos animais que recebeu. “As galinhas não se desenvolviam. Acho que não era pra ficar num lugar assim, quente. Não deu certo.”
À Folha, o diretor de relações externas e comunicações da Eneva, Aurélio Amaral, negou atraso no programa e disse que o tempo para conclusão dos quintais só vence em 2026. São cinco anos de prazo, portanto, para que a empresa entregue porcos e galinhas para 135 famílias do interior do Maranhão.
“Até o momento, cerca de 75 das 135 famílias previstas já foram contempladas pelo programa. A Eneva atenderá todas as famílias de acordo com o cronograma”, disse.
“A gente segue uma governança que tem alguns procedimentos e processos. Por mais que a gente queira, não posso simplesmente pegar o dinheiro da companhia e ir lá comprar um porco, uma galinha. Tem um processo burocrático”, afirmou também.
Em outubro, a Eneva comunicou que se transformou na maior geradora de energia térmica do país, com lucro anual de R$ 6 bilhões.
Liderança em Bom Jesus dos Pretos, Renê de Oliveira Salazar queixa-se também que muitos igarapés que banham a região foram aterrados durante as obras, prejudicando o abastecimento de água e a alimentação dos moradores.
“Se continuar assim, isso aqui vai virar um deserto, com tudo seco. Por onde passou o gasoduto, reviraram a terra e tamparam todos os igarapés”, diz Salazar. “Onde ainda tem água, acabou a safra do peixe, que alimentava toda a população dessa região.”
Entre aqueles que têm o terreno cortado pelos gasodutos da Eneva e recebem um pagamento mensal da empresa está Francisco Sotero dos Santos, 84. Um dos moradores mais antigos de Bom Jesus dos Pretos, ele afirma que uma quantia inferior a um salário mínimo por mês é depositada em uma conta da família.
“Já é alguma coisa, né”, diz Santos, apontando a área cortada pela tubulação. “O encanamento passa bem aqui do lado de casa. São uns 500 metros de comprido e 20 de largo.”
Para Fernanda Soares, técnica em agropecuária e gestora da igualdade racial de Lima Campos, a situação é de racismo ambiental (conceito de que minorias étnicas enfrentam riscos ambientais maiores), descaso e falta de assistência. Com frequência, diz ela, o povoado também é surpreendido com um barulho constante, noite adentro, que chega das máquinas de exploração de gás.
“É uma situação horrível. Já aconteceu de as janelas das casas da região tremerem, por causa do barulho. O que a gente vive aqui, na verdade, é um cenário de racismo ambiental, de descaso com o povo preto. Isso não acontece em outras comunidades que não são quilombolas. As pessoas foram abandonadas à própria sorte.”
O diretor de relações externas e comunicações da Eneva, Aurélio Amaral, disse que a empresa mantém uma equipe de responsabilidade social na região, para dar transparência na relação com os moradores e líderes comunitários.
Sobre o barulho causado durante a operação dos poços, a empresa afirmou que as comunidades mais próximas estão a 1 km de distância da estação de processamento de gás. “Todas as atividades seguem os mais altos padrões de segurança técnica e estão em total conformidade com a legislação ambiental, atendendo aos limites de emissões de ruído estabelecidos.”
Bolhas em água podre
No quilombo Bom Jesus dos Pretos, bem ao lado da estrada de terra que leva ao território, a Folha flagrou um poço de exploração de gás completamente abandonado, no meio do mato. Dentro do fosso quadrado de cimento, estruturas enferrujadas usadas para abertura e fechamento do poço estavam encobertas por água podre. A todo instante, bolhas escapavam no meio do lodo, conforme imagens captadas pela reportagem.
“Isso está há anos assim, desse jeito. A gente não sabe se tem algum risco, porque eles não explicam nada”, diz Salazar.
Pela norma, a desativação permanente de poços passa pelo envio de um plano, pelas empresas, à ANP (Agência Nacional de Petróleo). As medidas envolvem retirar o maquinário, replantar a vegetação e devolver ao local a sua condição natural. Nada disso ocorreu no quilombo Bom Jesus dos Pretos.
Ao receber, em 29 de outubro, fotos e vídeo feitos pela Folha, a Eneva afirmou que tomaria medidas imediatas. “Os poços identificados pela reportagem estão desativados provisoriamente e são objeto de inspeção frequente e de fiscalização da ANP”, afirmou a empresa.
No dia seguinte, em 30 de outubro, a empresa declarou que “a estrutura do poço OGX-34 é um caso único e será sanado nesta sexta, dia 1/11”. A empresa afirmou, ainda, que se tratava de um poço fora de operação. “O termo técnico adotado pela ANP é abandonado”, declarou.
Em 31 de outubro, a empresa repassou à reportagem imagens de uma equipe enviada até o local, que foi cercado por alambrados de arame, e afirmou que, em seus testes técnicos, não encontrou vazamento de gás nas bolhas que explodiam no lodo, mas sim de oxigênio.
Segundo a companhia, o poço apontado pela reportagem foi perfurado há mais de dez anos, considerado seco, e desativado temporariamente, sem nunca ter produzido gás natural.
A Eneva afirmou que respeita rigorosamente as normas de segurança operacional estabelecidas pela ANP e de proteção ambiental previstas na legislação. “Todos os poços em produção são equipados com sensores para monitoramento em tempo real, conectados por fibra óptica, e são atendidos rotineiramente por equipe de manutenção.”
Poços a perder de vista
Por onde se anda no Médio Mearim, microrregião do Maranhão formada por municípios que ladeiam o rio Mearim, se esbarra com placas indicando os “clusters” de gás da Eneva, estações de tratamento, vigas de concreto para a localização de gasodutos enterrados no chão. E os planos para a exploração do gás fóssil crescer no local não param.
A Folha teve acesso aos dados da Secretaria de Meio Ambiente do Governo do Maranhão sobre pedidos de licenciamento neste setor. Em apenas uma década, de 2013 a 2023, foram requeridas 148 licenças prévias ambientais para perfuração de poços de gás no estado.
A bacia hidrográfica do Mearim lidera o ranking, com 89 pedidos. Se somados todos os recursos recebidos com os royalties pelos municípios dessa região, chega-se a mais de R$ 607 milhões repassados ao Maranhão em uma década, como indicam os dados da ANP compilados pela Folha.
“Aparentemente, esses dados parecem colocar um PIB per capita alto, mas a verdade é que nada fica para o maranhense. Em São Luís, na capital, 40% das famílias vivem com menos de R$ 500 por mês”, diz Franklin Douglas, advogado e doutor em políticas públicas pela Universidade Federal do Maranhão.
“Isso mostra que o estado pode ser rico do ponto de vista mineral, mas é pobre do ponto de vista social e de desenvolvimento humano.”
Em 2021, o Maranhão foi último colocado do país no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) por renda e longevidade. É o estado com maior índice de Bolsa Família do país, com mais de 1,2 milhão de pessoas que recebem o benefício social, ante cerca de 650 mil trabalhadores com carteira assinada, conforme apontam os dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados).
Santo Antônio dos Lopes, onde fica o complexo de gás, tinha apenas 1.450 pessoas trabalhando com carteira assinada em 2022, o equivalente a 10% de sua população total. A Eneva, dona complexo industrial, afirmou que tem hoje 462 funcionários diretos no município, além de 2.166 indiretos.
“Combustível fóssil é um farol do passado, que acelera as mudanças climáticas. Além disso, vemos que a exploração de gás não traz alterações para a vida da população. A geração de energia elétrica não tem impacto na agenda de impostos dos municípios”, diz Guilherme Zagallo, advogado e ambientalista, baseado em São Luís.
“Por fim, você tem um vizinho poluente e barulhento, além de ser uma empresa que emprega pouco, já que as usinas têm um número de funcionários muito baixo”, critica.