Outro dia, levei um pito de um leitor, que me acusou de dizer como se fosse verdade algo que era apenas a minha opinião. Em sua homenagem, escrevo, desta vez, em primeira pessoa ? e confesso que não me sinto à vontade. A primeira pessoa dá ao texto um tom confessional ou um ar de intimidade que são coisa fácil para quem nasceu na última década, mas não para quem vem de mais longe. De todo modo, parece óbvio que cada um escreve aquilo que pensa. Digo que “parece” porque pretendo fazer uma ressalva importante.
Hoje, muitos temem dizer o que pensam, correndo o risco de serem mal interpretados ou indevidamente enquadrados em algum bloco ideológico. Os tementes, é claro, não são aqueles despudorados que se gabam de ideias preconceituosas. São, o que é mais provável, os que não querem ser confundidos com eles. Enfim, esse problema de dizer ou não dizer acentuou-se, ao que tudo indica, com a chamada “cultura do cancelamento”: um passo em falso e o indivíduo pode perder contratos, o emprego e o sossego. Por isso, às vezes, é melhor ficar quieto. Como diziam nossas avós, em boca fechada não entra mosca.
O cancelamento propriamente dito se volta para personalidades públicas de destaque, às quais se pretende constranger de alguma forma, mas, em alguma medida, estamos todos sujeitos aos efeitos dessa “cultura”. Esse é o ponto que, a meu ver, merece reflexão.
Um desses efeitos aparece na mudança de tom da crítica literária e de artes em geral. Antigamente, alguns críticos chegavam a ser temidos ? e, às vezes, odiados ? pelos autores, porque eram, ao mesmo tempo, respeitados como vozes de autoridade. Por isso mesmo, receber um elogio de um deles valia muito. Hoje, pelo menos na imprensa, esse tipo de atividade deu lugar a outro gênero de avaliação das obras, cuja premissa é jamais fazer apreciação negativa. Já ouvi de colegas que, quando não gostam muito de um livro sobre o qual escrevem, omitem aquilo que lhes desagradou e enfocam algum elemento positivo.
Passou-se a considerar mais importante do que o resultado (a obra em si) as suas condições de produção, a biografia do autor e, é claro, o investimento envolvido na publicação ou na encenação. Que direito teria um “crítico” de atrapalhar as vendas de um livro ou de interferir (negativamente) na bilheteria de um espetáculo? Visto dessa forma, parece justo ? afinal, que se ganha em “falar mal” da obra alheia?
Parece haver consenso sobre a inadequação desse tipo “antigo” de crítica, impróprio nos nossos tempos por uma questão econômico-moral, se é que me faço entender. Mas, se todas as apreciações têm de ser positivas, para não ofender ninguém e manter a etiqueta, como distinguir a crítica da propaganda? A resposta é simples: não há mais por que fazer essa distinção. O consumidor das obras artísticas as consome e, se quiser, depois publica nas redes sociais a sua opinião, que será apoiada ou contestada por outros, gerando “engajamento”, ou seja, propaganda.
A diferença é que deixa de existir a “voz de autoridade”, que se acreditava ser exercida por alguém com certo grau de conhecimento especializado. É claro que não há proibição expressa de que se critique um livro, peça teatral ou filme, mas, digamos, isso está fora de moda. Pode até acontecer de o autor criticado pedir um “direito de resposta”. Assim, a tendência é que desapareça o texto de crítica porque não se distingue mais a obra em si do seu autor nem a apreciação da obra do julgamento do caráter do seu autor.
Leia mais (11/30/2024 – 10h00)
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