O mecanismo de financiamento de um tratado global juridicamente vinculante contra a poluição plástica é um ponto crucial das negociações entre mais de 170 países que acontecem até domingo em Busan, na Coreia do Sul, durante o quinto e supostamente último INC (Painel Intergovernamental de Negociações, em inglês) e está no centro de mais uma discussão polarizada que ganha urgência neste final de semana.
O INC-5 está previsto para ser finalizado no domingo (1º), quando um texto deve ser aprovado por consenso. O tratado é visto como uma oportunidade única para a humanidade criar formas de lidar com o lixo plástico, um resíduo que deve triplicar suas mais de 350 milhões de toneladas anuais até 2060. Parte dele vaza para o meio ambiente e desconhece fronteiras —fragmentos minúsculos já foram encontrados em diversas partes do corpo humano.
Depois de cinco dias de negociações, o texto em discussão já perdeu um tanto da ambição que se esperava, como listar tipos de plásticos considerados problemáticos e que deveriam ser eliminados, e estabelecer quais aditivos químicos são tóxicos e precisam deixar as composições de plásticos em todo o mundo. Além disso, muitos países são contrários à menção aos impactos da poluição plástica na saúde humana.
Sem uma proposta robusta de financiamento, que especifique quem e como serão financiadas as mudanças necessárias ao cumprimento das normas que estão sendo estabelecidas no INC-5, o tratado corre o risco de se tornar apenas um conjunto de boas intenções num papel.
Uma proposta de financiamento submetida pelo grupo de países africanos, da América Latina e Caribe, Fiji e outras ilhas do Pacífico previa um fundo novo e independente, dedicado exclusivamente ao tratado, para que não competisse com outras prioridades ambientais.
O texto, do qual o Brasil é coautor, evidenciava a necessidade de financiamento de todos os países em desenvolvimento, com destaque para os países insulares e aqueles chamados menos desenvolvidos.
A redação proposta para o artigo 11, que trata de financiamento, tinha a aprovação de 120 países, inclusive do grupo das nações Árabes, mas foi desconsiderada em favor da proposta dos desenvolvidos, que não querem se comprometer com novos recursos.
Essa proposta, no entanto, adotada pelo embaixador Luis Vayas Valdivieso, presidente do INC, provocou uma grita geral. Os países em desenvolvimento pressionaram pela continuidade dos debates, que entraram madrugada a dentro em Busan, na busca por um texto mais equilibrado.
A delegação brasileira falou em “falta de respeito” ao se referir à adoção da proposta dos países desenvolvidos como base para os debates no INC-5.
Para Pedro Prata, oficial de políticas públicas para a América Latina da Fundação Ellen MacArthur, o debate sobre financiamento deveria focar em “como países mais desenvolvidos, com renda maior e que historicamente poluíram mais, podem financiar países em desenvolvimento, que historicamente poluíram menos”. “É um debate muito parecido com o do clima”, avalia.
O texto adotado do INC-5 ignora as diferenças entre países quanto a recursos e capacidade disponíveis para a implementação do tratado e sugere o uso de fundos já existentes, como o GEF (Fundo Global do Meio Ambiente, em inglês).
Este fundo é criticado pelos países em desenvolvimento por dar pouco espaço a suas vozes. Para se ter ideia, 54 nações africanas se revezam em cerca de 4 assentos enquanto 20 ilhas do pacífico têm de dividir um único assento ao mesmo tempo em que estão entre os territórios mais afetados pela poluição plástica. Além disso, com peso maior do voto de países desenvolvidos, a tendência é que ele funcione como um veículo de exportação do modelo e legislação europeus.
A proposta também não adota o termo “países em desenvolvimento”, vetado pelos EUA, mas que já foi adotado em outros acordos, como no da Convenção sobre Diversidade Biológica.
“A linguagem que os desenvolvidos oferecem é vaga. Fala em ‘countries most in need’ [países mais necessitados, em inglês], mas como não há a menor clareza de quem sejam. Nem mesmo as pequenas ilhas estariam garantidas. Ninguém, na verdade”, afirmou a embaixadora Maria Angélica Ikeda, diretora do departamento de Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores e chefe da delegação brasileira nas negociações.
Ela falou à Folha já depois da meia-noite no horário de Busan, e os debates não tinham hora para acabar. E chamou a atenção para alguns parágrafos do texto adotado que não fazem sentido. Em um dos trechos, a proposta diz que os países com problemas para gerir resíduos devem financiar o mecanismo financeiro. É de amplo conhecimento, no entanto, que esses costumam ser os países mais pobres, ou seja, justamente aqueles que, pelas dificuldades técnicas e financeiras, precisam do mecanismo.
Governos de países em desenvolvimento precisarão de novas políticas e legislações enquanto as indústrias desses países precisarão de acesso a recursos para cumprirem as regras em vias de serem estabelecidas.
“As finanças são o alicerce da implementação. Um texto que carece de clareza e especificidade nesse aspecto coloca em risco a capacidade de muitos países de implementar as medidas necessárias. Precisamos de uma abordagem financeira robusta que permita a participação de todos os Estados Parte”, apontou Michel Santos, gerente de políticas públicas da ONG WWF Brasil.
A chefe da delegação brasileira tem sido convidada pelo presidente do INC para facilitar negociações informais e tem feito essas costuras, quando possíveis. “O tempo está correndo rápido e estamos tentando ser rápidos, mas há muita polarização”, diz.