A PEC (proposta de emenda à Constituição) que acaba com todas as previsões de aborto legal no Brasil, aprovada nesta quarta-feira (27) pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, não é a primeira que tenta alcançar esse objetivo.
Ela segue um roteiro já batido no Congresso, em que um projeto polêmico passa por votação preliminar e cria uma polêmica política para os envolvidos, para então ser deixado de lado. Mas a composição conservadora da Câmara e o aumento de parlamentares com disposição para carregar a chamada pauta de costumes à frente preocupa ativistas contrários à PEC.
A proposta, que foi apresentada pela primeira vez pelo então deputado Eduardo Cunha, em 2012, quando este era presidente da CCJ, propõe inserir na Constituição a “inviolabilidade da vida desde a concepção”.
Na prática, isso inviabilizaria todos os casos de aborto legal previstos hoje no Brasil. A interrupção é permitida quando a gestação é resultado de estupro, quando há risco de vida para a gestante ou quando é diagnosticada anencefalia fetal.
Muitos projetos com o intuito de restringir o aborto são apresentados em todas as legislaturas do Congresso. A maior parte deles morre sem ver a luz do dia, mas, na última década, alguns chegaram à análise de comissões e até a votações preliminares no plenário.
O mais famoso deles é o Estatuto do Nascituro, proposto pela primeira vez em 2007 pelo criador da bancada antiaborto do Congresso, o então deputado Luiz Bassuma. Entre idas e vindas, o projeto nunca prosperou: deputados tentaram votá-lo em 2022 e, novamente, em 2023, sem sucesso.
Outros já foram aprovados em instâncias diversas. Em 2015, Cunha conseguiu votar na CCJ um projeto que criava restrições para vítimas de estupro que buscassem aborto legal, estabelecendo a necessidade de boletim de ocorrência e exame de corpo de delito.
Dois anos depois, uma comissão especial da Câmara aprovou a PEC 181, que dispunha sobre ampliação da licença-maternidade a mães de prematuros, mas continha um “jabuti” antiaborto: a expressão “vida desde a concepção”. Nenhuma das propostas chegou até o plenário.
Em junho de 2024, pela primeira vez um projeto bateu na trave: o PL Antiaborto por Estupro (PL 1904) teve requerimento de urgência aprovado no plenário da Casa. O texto criminalizaria a interrupção de gestações acima de 22 semanas, mesmo em casos de estupro e risco de vida.
Com forte pressão contrária, o projeto sumiu da cena política. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) prometeu discuti-lo em comissão no segundo semestre deste ano, mas nunca criou o colegiado.
O resultado foi aclamado como vitória do movimento feminista, que focou os ataques à proposta no impacto que a restrição teria em gestações de meninas, maior parte das que precisam recorrer a abortos depois das 22 semanas.
Apesar disso, setores do movimento feminista veem com preocupação o aumento das investidas contra o aborto. “Eles têm várias ‘bombinhas’ espalhadas nas comissões”, diz a articuladora política da ONG Cfemea Joluzia Batista. “Quando uma não dá certo, como foi o caso do PL 1904, partem para outra, agora a PEC.”
A CCJ é a comissão mais importante da Câmara, e hoje é presidida pela bolsonarista Caroline de Toni (PL-SC). Deputados da oposição ouvidos pela Folha atribuem a votação da proposta neste momento às pretensões políticas da catarinense, que deixa a CCJ no fim do ano e quer se candidatar ao Senado em 2026.
Para a professora da UnB Flávia Biroli, isso não significa que não haja vontade real dos bolsonaristas em relação à agenda de proibir o aborto legal.
“A radicalização é tal que eles estão em desacordo com o que a maioria da população defende”, afirma ela. Pesquisa Datafolha deste ano mostrou que 58% dos brasileiros são contra proibir o aborto totalmente.
Laura Molinari, coordenadora-executiva da campanha Nem Presa Nem Morta diz que a estratégia de grupos contrários à PEC deve ser a mesma utilizada no PL 1904. “A sociedade não concorda com os discursos retrógrados que emanam do Congresso e é a favor do direito ao aborto legal”, afirma. “Cabe a nós manter a crítica e a reação, porque é essa mobilização ampla da sociedade que tem conseguido barrar retrocessos.”
Com todas as ponderações em relação à força conservadora no Congresso, a avaliação de Biroli e também de parlamentares é de que, novamente, a PEC deve ter dificuldades de prosperar. Ela teria que ser encampada por Lira ou seu provável sucessor, Hugo Motta (Republicanos-PB), que não parecem demonstrar disposição de fazê-lo no momento.
A proximidade da disputa pelo comando da Casa, inclusive, conta contra os conservadores. O recesso de final de ano se aproxima, tornando escasso o tempo para aprovação de uma proposta como essa ainda em 2024. Além disso, Motta conta com apoio oficial do PT para sua eleição, e o partido se posicionou contra a PEC.
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