Se promulgada, a proposta de emenda à Constituição, que conservadores têm chamado de PEC da Vida e progressistas leem como o fim do aborto legal, pode aumentar a mortalidade materna. Isso porque, na prática, ela tem potencial para inviabilizar o aborto mesmo quando a gravidez representa risco de morte para a mãe.
Essa hipótese não é benquista nem entre defensores da PEC, mas poderia acontecer caso o texto seja aprovado pelo Congresso. Ele é vago o bastante para criar uma guerra de versões, sem clareza sobre suas consequências reais para as milhares de mulheres que todos os anos optam pelo aborto garantido por lei no Brasil.
A redação foi proposta em 2012 pelo então deputado Eduardo Cunha. Ela altera o artigo 5° da Constituição para incluir a expressão “vida desde a concepção” na parte que fala sobre “a inviolabilidade do direito à vida”. Essa formulação é comum em projetos defendidos pela bancada antiaborto, como o Estatuto do Nascituro, que tramita na Câmara sem sucesso desde 2007.
A PEC abre uma brecha jurídica para impedir inclusive o aborto legal, segundo especialistas. Ela foi aprovada nesta quarta (27) pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, por 35 votos a 15, sem especificar em que circunstâncias a constitucionalização da “vida desde a concepção” deve ser lida como proibição ao aborto.
Para os movimentos pró-descriminalização do procedimento, a proposta é uma sentença de morte no caso de risco de vida para a gestante. “Ela cria uma confusão jurídica que certamente vai aumentar a mortalidade materna”, diz Laura Molinari, coordenadora-executiva da campanha Nem Presa Nem Morta.
Ela dá como exemplo a gravidez ectópica, quando o embrião se fixa fora do útero e que pode ser letal. “Um médico nessa situação não sabe se interrompe a gestação, que é inviável, ou se deixa ela continuar até o limite em que vai romper a trompa, porque não sabe se salva a vida da mulher ou do embrião.”
Para Helena Paro, diretora do serviço de aborto legal do Hospital das Clínicas de Uberlândia, a PEC pode piorar um cenário que já é ruim. “Hoje, 30% das mortes maternas são causadas por condições pré-existentes que pioram com a gravidez, e que por isso teriam indicação clínica de interrupção.”
A médica diz que uma recomendação dessas não vale apenas para condições agudas e imediatas. “Muitos casos de má-formação fetal incompatível com a vida, por exemplo, trazem riscos aumentados de doenças numa gravidez que não vai ter uma criança viável.”
Ela evoca exemplos em estados dos EUA que aprovaram leis duras para o aborto. Na Georgia, uma mulher foi ao hospital com sangramento excessivo, mas médicos, temendo represálias, decidiram esperar o fim dos batimentos cardíacos do feto. Ela morreu por infecção generalizada. Deixou um filho de seis anos.
O Código Penal brasileiro prevê punição a quem realiza e a quem se submete à técnica, salvo três hipóteses: risco para a mãe, estupro ou feto anencéfalo.
Discurso recorrente entre conservadores, contudo, sustenta que cabe apenas a Deus decidir quando tirar uma vida. Isso incluiria mulheres, crianças inclusas, que engravidem do estuprador. Elas não teriam o direito, nessa visão, de interromper a gestação.
No meio do ano, a Câmara sofreu pressão popular ao tentar acelerar a tramitação de um projeto de lei que equipara a homicida a mulher que, nesse caso, aborte com 22 semanas ou mais de gestação. A lei brasileira, se essa redação fosse avalizada pelos parlamentares, ficaria tão dura quanto a do Afeganistão.
A relatora, Chris Tonietto (PL-RJ), afirmou no dia que “o estupro não se combate” brecando uma gestação, que para ela seria “uma forma até de revitimizar a mulher, porque as pessoas romantizam o aborto”.
“Primeiro, está se matando uma criança inocente. Segundo, qual é a modalidade do aborto? Há aborto por sucção, por esquartejamento, por assistolia fetal, em casos mais tardios. Em todos os casos, é preciso matar e, antes disso, torturar”, disse.
Tonietto fez uma ressalva “em caso de risco de vida da mulher”. O procedimento aqui é aceitável, por haver “estado de necessidade”, disse.
É o argumento mais comum entre parlamentares e líderes religiosos questionados pela Folha sobre as implicações práticas da PEC.
A maioria respalda o veto à prática para quem foi estuprada. A pastora Elizete Malafaia cita crianças gestantes: “Se ela sofrer um abuso, ela vai ser mãe, sim. Não adianta, está sendo gerada por ela. Claro que ela não vai ter uma maturidade emocional para cuidar dessa criança, mas não é por causa disso que a gente é a favor do aborto”.
Agora, se a gravidez põe em perigo a vida materna, o jogo muda, segundo a pastora. “Aí a preferência é de quem está vivo, é da mãe.”
O deputado Marco Feliciano (PL-SP) concorda e acrescenta que “a PEC apenas acrescenta que a vida começa na concepção”, e que cabe à “comissão especial discutir onde começa a vida”. Para tanto, afirma, “ouviremos cientistas, especialistas etc., e só após as audiências o relator especificará o que for preciso”.
Ex-presidente da Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos), o advogado Uziel Santana diz que nem sequer vê na PEC ameaças ao aborto legal, apesar de pessoas envolvidas com ela serem explícitas sobre abolir o procedimento para mulheres estupradas, por exemplo.
A legislação prevê “excludentes de ilicitude”, ou seja, situações em que uma conduta a princípio proibida não é criminosa. Seria, no entender de Santana, o caso do aborto permitido no país.
Se nada muda, por que a PEC, então? Para ele, o recado é para quem quer flexibilizar ainda mais o aborto: “Parem de querer criar propostas legislativas infraconstitucionais ou por via judicial” que afrouxem o quadro atual.
Para Estevam Hernandes, apóstolo da igreja Renascer em Cristo, “os casos previstos pela lei são casos excepcionais de foro íntimo”, portanto “a lei deveria continuar como está”. Pessoalmente, é a favor da adoção para filhos de mães que foram abusadas.