Dois volumes se cruzam num doce balanço a caminho do mar. Não é exagero lembrar as curvas da bossa nova ao descrever o encontro das lâminas de concreto do Palácio Gustavo Capanema, joia da arquitetura moderna, à beira da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro.
O prédio recém-restaurado, celebrado como divisor de águas na história da arquitetura mundial, já inspirou poemas, um muito conhecido de Vinicius de Moraes, que também deu forma à “Garota de Ipanema”, e sua praça aberta, marcada pelos pilotis que sustentam toda a estrutura, vira abrigo de foliões embriagados dançando em blocos todo Carnaval.
Lar do antigo Ministério da Educação e Saúde, a construção inaugurada na década de 1940, ainda na ditadura varguista do Estado Novo, veio antes da bossa nova e da explosão de vanguardas que levaria à construção de Brasília décadas depois, mas seu surgimento se deu num encontro fortuito, no caldo cultural de um Rio de Janeiro que se modernizava sem esquecer o hedonismo, apesar da mão de ferro do governo.
O autor de seus primeiros esboços foi quem era considerado então o papa do modernismo, o franco-suíço Le Corbusier, que àquela altura já rodara a América do Sul em busca de trabalho e belas mulheres. Quando ouviu uma de suas conferências cheias de drama e visões de um futuro racional e maquínico em São Paulo, um Mário de Andrade seduzido lamentou que pediram só palavras e não obras ao arquiteto, o que mudaria pouco depois com o Palácio Gustavo Capanema.
Le Corbusier, de fato, já vinha demonstrando sua receita de uma arquitetura marcada pelo que chamou de “esprit nouveau”, ou novo espírito, em construções-manifesto pela Europa —todas seguindo a receita de seus cinco pontos, estrutura flutuando sobre pilotis, janelas de fora, planta e fachada livres.
Esse método, de extrema simplicidade plástica mas também de uma dureza e austeridade incompatíveis com a exuberância tropical, foi transformado à imagem da elasticidade carioca. Quem tocou mesmo a obra foi Lúcio Costa, que viria a ser o urbanista de Brasília, e um time de arquitetos que tinha ainda Affonso Eduardo Reidy, mais tarde autor do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e um jovem Oscar Niemeyer, que em paralelo construía a Pampulha, em Belo Horizonte.
O desenho inicial de Le Corbusier, antes uma única lâmina de horizontalidade exacerbada, foi torcido pelos brasileiros para dar lugar ao suave encontro de seus dois volumes, o principal, de fachada transparente e cristalina, e o menor coroado pelo jardim de Roberto Burle Marx no terraço com vista para o mar.
Não seria do desagrado de Le Corbusier, que já caía de amores pelo Rio de Janeiro. Chegou a observar mesmo nas favelas que os barracos seguiam seu princípio construtivo. “O negro tem sua casa sempre a pique, sustentada por pilotis na parte da frente”, ele escreveu, em sua primeira estada na cidade. “Do alto das favelas sempre se contempla o mar, as enseadas, os portos, as ilhas, o oceano, as montanhas, os estuários. O negro vê tudo isto; o vento reina, útil sob os trópicos.”
Essa mesma brisa parece ter embalado a liberdade criativa de Costa e seu time. Se o volume construído segue a geometria límpida do modernismo internacional, as soluções finais do projeto foram a mais pura expressão do estilo que ficou conhecido como escola carioca, celebrado mesmo antes da inauguração do prédio na histórica mostra “Brazil Builds”, no Museu de Arte Moderna, o MoMA, em Nova York.
O mundo via ali pela primeira vez uma “curtain wall”, como se passou a chamar a pele toda de vidro de um prédio numa época em que nem os mais vistosos arranha-céus de Manhattan flertavam com a técnica. E viu também a mais bem orquestrada integração plástica das obras de arte à carne da construção.
Isso porque os painéis de azulejos azuis e brancos de Candido Portinari, seus murais retratando os ciclos econômicos do país, o paisagismo do jardim suspenso de Burle Marx e as esculturas de Bruno Giorgi, entre outros artistas, não são ornamentos descartáveis, de todo indesejados pela cartilha moderna, mas parte integrante da mensagem da construção, o verdadeiro manifesto de seu “esprit nouveau”.
O turbilhão marinho de conchas, peixes e estrelas do mar nos painéis de Portinari, que emolduram a entrada do palácio, ancoram a construção no terreno à beira do mar onde ela se ergue, agita a placidez dos planos tão duros dos dois blocos que se encontram, como que firmando a raiz carioca daquilo que se quer monumento de vanguarda internacional.
Também as curvas do jardim de Burle Marx desafiam a força bruta dos ângulos retos que dominam a construção, um contraponto à geometria dos brises-soleil, ela também quebrada pela cor, um azul, um branco, ecoando o fundo do mar de Portinari.
Vinicius de Moraes viu nesses painéis o encontro das conchas com os cavalos marinhos flutuantes, “ágeis e sinuosos”. O poeta dissecou nos versos de “Azul e Branco” esse mesmo contraste entre a dureza da rocha, o receituário moderno, e a fluidez da água, o nascente modernismo tropical. Era o “amor infinito” que se “retifica em hastes, antenas paralelas”, “massas geométricas em pautas de música”, “plástica e silêncio”.