De janeiro a setembro de 2024, a Polícia Ambiental Marítima de São Paulo apreendeu 127 redes de pesca ilegais no litoral do estado. Juntas, poderiam cobrir 20,9 km, três vezes a praia de Santos.
Além de poluir o mar, o material pode causar acidentes fatais, como os de dois surfistas do sul do Brasil, afogados após ficarem presos em redes de pesca. As tragédias motivaram a criação de ONGs que lutam pela preservação dos oceanos e pela prática segura de esportes.
No Rio Grande do Sul, a criação da Mar Seguro veio após a morte de Thiago Rufatto, 18, na praia Capão da Canoa, em 2010. Redes de pesca ilegais foram a causa do afogamento do surfista. Criou-se então um movimento para atualizar a lei estadual que delimitava áreas de pesca.
“Passaram de 400 metros para 2 km nos 14 municípios do litoral norte do estado”, conta o diretor da entidade na época, Virgílio Matos. “Hoje temos áreas para lazer, livres de redes de pesca, responsabilizando quem descumprir.”
No Paraná, em 2012, a surfista Renata Turra Grechinski também se afogou após ficar presa em rede de pesca, na Barra do Saí. Ela tinha 23 anos e sua morte motivou a criação da ONG Parceiros do Mar.
De acordo com o Corpo de Bombeiros do Paraná, no estado, desde 2007, seis pessoas morreram afogadas vítimas de acidentes com redes de pesca.
“Artefatos de pesca inutilizados são lixo e representam riscos para animais, banhistas e esportistas, sejam boias de isopor, âncoras ou cabos de aço concretados ao fundo para armar redes”, alerta Silvia Grechinski, irmã de Renata e presidente da Parceiros do Mar.
Eles buscaram apoio para delimitar áreas de pesca e lazer no Paraná, mas os projetos de lei não foram aprovados. “Tentamos encontrar um culpado entre as comunidades pesqueiras, mas percebemos que o que há é ausência do Estado em garantir direitos e educação para estas comunidades, além de segurança.”
Voluntários da ONG já retiraram 20 toneladas de resíduos em 15 cidades de cinco estados da costa brasileira desde 2012. Entre os mutirões de limpeza de praias, estão os realizados na Ilha do Mel, onde acontecem as aulas práticas de um dos projetos apoiados pela entidade.
Chamado Ondas da Transformação, ele envolve 130 crianças e adolescentes de escolas públicas de sete comunidades carentes de Paranaguá, no litoral paranaense.
Apoiado também pela Associação de Surf de Paranaguá, o trabalho envolve conservação, educação ambiental, cultura oceânica e aulas de surf. Os encontros, duas vezes na semana, têm palestras, treinos na piscina, no skate e incluem alunos autistas e com deficiências.
“Nosso foco não é criar atletas de alta performance, mas cidadãos. Queremos mostrar quanto o surf e o mar podem ser transformadores”, diz o presidente da associação e coordenador do projeto, Alessandro do Rosário. Ele aponta redução na evasão escolar, melhora nas notas, no relacionamento familiar e na autoestima dos estudantes.
“Ele ficou disciplinado e organizado, não sente mais tantas dores”, observa Jydarlen Elias, mãe de Dimitri Mikulim, 14. Ele, que tem hidrocefalia e má-formação na coluna vertebral, entrou no projeto em 2021.
“Comecei a me cuidar mais, comer frutas e saladas, fazer caminhada, separar o lixo reciclável e gastar menos água”, conta o garoto. “Na água, eu me sinto feliz, livre, e com o surf isso se torna melhor ainda.”
Seu colega Thiago Matilde, 15, diagnosticado com autismo, participa das aulas há três anos. “Eu gosto de estar no mar, sentir a onda, o barulho me acalma, sinto alegria.”
Sua mãe, Laize Freitas, conta que ele superou o medo do mar e passou a interagir com os colegas. “É surpreendente o desenvolvimento.”
O trabalho tem apoio da empresa Cattalini Terminais Marítimos, por meio da Lei de Incentivo ao Esporte, mas precisa de novos parceiros para 2025. “O impacto socioambiental é muito positivo. É visível maior interesse, consciência ambiental crítica, cidadania, inclusão, respeito e empatia”, avalia Ângela Bahry, coordenadora de ESG da Cattalini.
Apesar dos avanços, muito lixo ainda é encontrado nas praias, especialmente redes de pesca, enfatiza Rosário. “É um problema recorrente e se intensifica nos períodos de pesca, nos quais vem muito aventureiro, que nem pescador é, compra uma rede, vendida em qualquer lugar, joga na beira na praia e engata nas pessoas.”
Segundo o State of the Ocean Report 2024, relatório divulgado pela Unesco em junho, há de 1 milhão a 5 milhões de toneladas de plástico nos oceanos. No Atlântico e no Índico, a principal fonte de plástico são redes e demais materiais usados para pesca, como anzóis e linhas.
Nesta semana, na Coreia do Sul, está em curso a discussão do Tratado Global de Combate à Poluição Plástica da ONU (Organização das Nações Unidas). A poluição dos oceanos é um dos temas de maior preocupação.
No Brasil, nos últimos cinco anos, seis toneladas de redes de pesca foram retiradas do mar apenas pela Marulho, empresa de Ilha Grande, no Rio de Janeiro.
“Algumas técnicas de pesca são tradicionais e de baixo impacto ambiental, mas temos técnicas altamente prejudiciais, como o uso de embarcações a motor, que já têm regras específicas. O problema é a fiscalização insuficiente”, diz a oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, fundadora da Marulho, que transforma redes em materiais como bolsas e bonés, gerando renda para a comunidade caiçara.
“Precisamos responsabilizar as empresas que produzem esses materiais para que promovam logística reversa e incentivem a reciclagem.”
Restos de rede de pesca, plástico e náilon também são encontrados em aves marinhas estudadas pelo Centro de Estudos do Mar da UFPR (Universidade Federal do Paraná). De 2015 a 2019, das quase mil aves da espécie Puffinus puffinus (conhecida popularmente como bobo-pequeno ou pardela-sombria) analisadas, 81% ingeriram resíduo sólido, explica a pesquisadora Kamila Maier.
“É um alarme, pois eles são sentinelas, sentem primeiro os malefícios, que chegarão a nós. Estudos mostram plástico no pulmão, na corrente sanguínea e até no leite materno”, alerta.
A oceanógrafa Lara Vidal, pós-doutoranda em sistemas costeiros e oceânicos na UFPR, ressalta os benefícios dos serviços ecossistêmicos do oceano, que abrangem, entre outros pontos, a produção de alimentos e a regulação do clima no planeta. “Devemos repensar o quanto precisamos deles e os valorizamos.”
Alexander Turra, doutor em ecologia, responsável pela Cátedra da Unesco para Sustentabilidade do Oceano e integrante da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, da Fundação Grupo Boticário, enfatiza que a cultura oceânica fortalece movimentos de preservação, individuais e coletivos. “Cria um ciclo virtuoso de melhoria da qualidade do mar e de vida das pessoas.”
Esta reportagem foi premiada no Edital Conexão Oceano de Comunicação Ambiental, promovido pela Fundação Grupo Boticário em parceria com a Unesco.