Neste mundo polarizado, em que facilmente o evangélico é confundido com bolsonarista, desafio as classificações e escrevo sobre como o enredo da minha família seria quase idêntico ao de “Ainda Estou Aqui“. Substituímos Eunice por Glícia, Rubem Paiva por Eródoto José Rodrigues, os cinco filhos deles por mim e meus quatro irmãos.
Rubem foi deputado federal e cassado; Eródoto, primeiro-sargento da aeronáutica, também foi cassado. Rubem voltou à engenharia, e Eródoto, à universidade, para se licenciar em história. Glícia, depois de ser mãe de seis, se tornou professora de crianças. Com apenas uma gigantesca ressalva: Rubem nunca voltou para casa, e meu pai, sim.
Papai foi preso no exato dia do golpe. Na madrugada de 1º de abril de 1964, ele se juntou a um grupo de oficiais e sargentos que se amotinaram contra os militares que conspiravam contra o presidente eleito democraticamente.
Meu pai (socialista, sim) levantou a questão do legalismo. Segundo ele, como todo militar jura à Constituição e à bandeira, era seu dever se insurgir contra um movimento golpista —que depois rasgaria a Constituição e empurraria o país para um longo período de arbitrariedade e violência.
Preso e transferido, incomunicável, de Fortaleza para a Base Aérea do Galeão, no Rio, Eródoto sofreu tortura. Lá permaneceu preso, e minha mãe, igual a Eunice, com cinco filhos e ainda grávida de gêmeos (a menina morreu dias depois do parto), amargava uma viuvez de marido vivo. Sem lugar para morar, encontramos refúgio na casa de vila de nossos avós enquanto mamãe, desesperada, batia na porta de coronéis e brigadeiros em busca de notícias.
Papai conseguiu enviar, de forma clandestina, uma carta sobre seu paradeiro. Ele ainda estava vivo, mas amargava truculência e desterro no Rio. Embora apavorada com a situação do país, nossa família respirou algum alívio.
Rubem Paiva desapareceu —morto sob tortura nos porões de um quartel do Exército, já no segundo dia de sua prisão, e o corpo jamais foi encontrado.
Transferiram papai de volta do Rio para a Base Aérea de Fortaleza, onde aguardaria, por alguns meses, a burocracia ditatorial. Nunca esqueci o dia em que o visitei na prisão. Papai saiu da cela, caminhou até um corredor e se ajoelhou para esperar nosso abraço. Meu irmão e eu corremos, saltamos contra seu peito enquanto o beijamos. Ele estava magro, com a cabeça raspada.
Fitei os seus olhos. Papai chorava. Minha reação imediata foi: “roubaram a alma do meu pai”. Eles o haviam danificado na prisão. Dali em diante, desiludido com amigos e entristecido com a sordidez de um regime ditatorial, Eródoto se tornou irônico; a ironia tornou-se o traço mais marcante de sua personalidade. Ele tentou, pelo resto da vida, esconder em um humor ácido a sua desesperança em relação ao futuro do Brasil.
Tortura esmaga, tritura, pulveriza pessoas e as sequelas são para sempre; não só em quem sofreu, mas em toda a família. Em 1968, por ocasião do AI-5, com medo de voltar a “desaparecer”, parte da família fugiu para uma região remota do Ceará, enquanto os outros ficaram para trás para queimar livros de sociologia, história e ciência política; nada que pudesse comprometer e provocar mais perseguição, nada que pudesse servir de evidência.
Eunice morreu com Alzheimer, e papai, também.
Eu, seu filho, também “Ainda Estou Aqui”. A história da família Paiva coincide tanto com a minha que chorei o filme inteiro. Gerações devem lembrar e recontar aqueles anos tenebrosos para que nunca mais se repitam tantas arbitrariedades.
Hoje me vejo como guardião da memória dos meus pais e do sofrimento de nossa família; sou uma atalaia a gritar contra o avanço da extrema direita enquanto, teimosamente, insisto em falar de esperança.
Soli Deo Gloria.