O governo Lula (PT) diz que está preparando uma reforma administrativa mais ampla que a da proposta de emenda à Constituição (PEC) 32, apresentada pela gestão de Jair Bolsonaro (PL). Um dos objetivos seria elaborar uma nova legislação para substituir as normas existentes sobre a organização da administração federal.
A redução dos gastos públicos com o funcionalismo, contudo, parece não ser um dos pontos norteadores da reforma. Tanto que, ao abordar o tema, a ministra da Gestão e Inovação, Esther Dweck, refere-se à defesa da estabilidade do serviço público e à necessidade de elaboração de mecanismos de avaliação de desempenho dos servidores.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, declarou há mais de um mês que era chegado o momento de “levar a sério a revisão de gastos estrutural no Brasil”. A equipe econômica, porém, demora a apresentar seu plano. E, à exceção de um declarado combate a supersalários, não há menções às despesas com pessoal.
Na contramão do governo, especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que é necessário considerar a parte econômica da reforma administrativa ao invés de somente mirar nas regras para o funcionalismo.
O economista-chefe da Ryo Asset, Gabriel Leal de Barros, afirma que a situação fiscal do país demanda soluções estruturais e não atalhos. Nesse sentido, diz, uma reforma administrativa seria bem-vinda e necessária.
“A questão é que essa agenda não parece estar na lista de prioridades do governo, que vem buscando atalhos e soluções pontuais, temporárias, para o desequilíbrio fiscal”, diz.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou semanas atrás que a reforma administrativa é importante para a redução da taxa básica de juros.
“Não sei se é oficial ou não, estão falando de reformas administrativas. Há uma expectativa de que depois das eleições veremos algumas medidas. Isso é muito importante para que nós no Banco Central sejamos capazes de reduzir as taxas [de juros] de forma sustentável”, declarou.
A reforma administrativa foi prometida por Lula ainda durante a transição de governo no fim de 2022, e daria andamento a propostas que já tramitam no Congresso. A expectativa era de que o assunto seria uma das prioridades deste ano, mas acabou não caminhando.
Recentemente, o secretário de Gestão de Pessoas do MGI, José Celso Cardoso Jr., afirmou que a reforma administrativa já estaria sendo implantada desde 2023. O secretário destacou que está em andamento “uma série de medidas de natureza infraconstitucional e incremental que já vêm sendo adotadas, para melhorar a estrutura e as formas de funcionamento da administração pública”.
A fala de Cardoso não deixa de evocar a “reforma administrativa silenciosa”, feita pelo ex-ministro da Economia do gestão de Bolsonaro, Paulo Guedes. Um de suas bases foi a digitalização dos serviços púlbicos, além da interrupção de contratações e de reajustes para os servidores, a partir da pandemia. As medidas fizeram com que o gasto federal com pessoal despencasse de 4,13% do PIB em 2018, para 3,4% do PIB em 2022.
Segundo o economista sênior da Julius Baer Brasil, Gabriel Fongaro, uma reforma administrativa deveria andar em paralelo com a agenda de reforma de cortes de gastos. “A folha de pagamentos da União é a segunda maior despesa primária do governo, então, uma boa reforma administrativa é peça fundamental para um ajuste fiscal estrutural”, diz.
Em paralelo à iniciativa do governo federal, o Supremo Tribunal Federal (STF) flexibilizou o regime de contratações do setor público. Em decisão do último dia 6, a Corte restabeleceu a validade de uma emenda constitucional de 1998 que havia permitido à União, estados e municípios contratar funcionários no regime da CLT – como ocorre com os trabalhadores formais da iniciativa privada.
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Reforma administrativa de Lula não visa redução do Estado
Em outra declaração a respeito da reforma administrativa, a ministra Esther Dweck afirmou que evita usar o termo reforma administrativa por trazer um cunho “muito liberal”, o que não seria a tônica do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
“Toda vez que se falou amplamente sobre reforma administrativa, tinha esse viés de redução do Estado – o que não é, obviamente, o viés do governo Lula”, afirmou. “Mas isso não significa que a gente não enxergue que existem vários problemas na administração pública federal que precisam ser enfrentados.”
Como mostrou a Gazeta do Povo, após cinco anos em queda, o número de servidores civis do governo federal voltou a crescer após a posse de Lula. O contingente, que era de 565 mil servidores ao fim do governo de Jair Bolsonaro (PL), em dezembro de 2022, passou a 572 mil um ano depois e agora chegou a 573 mil, segundo dados de agosto do Painel Estatístico de Pessoal da União.
Contando funcionários com ou sem carteira assinada, miltares e servidores estatuários nas esferas federal, estadual e municipal, o Brasil tinha em julho um total de 12,7 milhões de servidores públicos, segundo a LCA Consultoria Econômica. O contingente aumentou 8,3% apenas entre o primeiro e o segundo trimestre do ano.
Do total de servidores federais, 70% são estatutários, pouco acima da média de 65% observada em todas as esferas. O regime prevê plena estabilidade para o desempenho de suas funções, sem que os funcionários sejam submetidos a avaliações de desempenho.
Além disso, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, o Brasil tem uma alta relação de gastos com servidores e o PIB, 8,9%. Mas, ainda que o gasto seja elevado, a proporção de servidores em relação à população e aos empregados em geral (12,2% e 5,7%) não é alta. O peso vem mesmo do tamanho dos salários, que em boa parte dos casos superam os praticados na iniciativa privada.
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Portaria do MGI fixou regras estabelecidas em negociações da pasta com servidores
Dentre as medidas do Ministério da Gestão e Inovação para tocar a reforma administrativa, está a edição da Portaria 5.127, de agosto, que fixa algumas diretrizes das carreiras do serviço público.
A norma é fruto de negociações do ministério com as diversas categorias de servidores e estabelece, por exemplo, princípios e orientações gerais que os órgãos públicos deverão seguir para apresentar as suas propostas de reestruturação de cargos, carreiras e planos.
De acordo com o secretário José Celso Cardoso, há atualmente 117 planos de cargos, 43 carreiras e cerca de 2 mil cargos distintos. Desde 2023, a ministra da Gestão e sua equipe têm sentado com as diferentes categorias para discutir reajustes e novas regras para os planos de carreira, incluindo a remuneração inicial e o atingimento do topo da carreira.
O secretário ainda afirmou que a portaria deste ano é o “primeiro instrumento normativo desde a Lei 8.112 de 1990”. Dentre os aspectos tratados na portaria, estão as orientações para a elaboração de propostas de criação e reestruturação de planos, carreiras e cargos, a busca da excelência na gestão de pessoas, a priorização de atividades estratégicas e complexas, bem como o reconhecimento do mérito individual.
Governo criou grupo de trabalho para substituir decreto-lei
Outra iniciativa da pasta no âmbito da reforma administrativa foi a criação de uma comissão, que também conta com a participação de representantes da Advocacia-Geral da União (AGU), para elaborar uma nova legislação em substituição ao Decreto-Lei nº 200/1967.
Instituído durante o regime militar (1964-1985), o decreto “dispõe sobre a organização da administração federal” e, até os dias de hoje, é uma das principais legislações para a administração pública.
De acordo com o Ministério da Gestão, a nova lei que está sendo elaborada visa fazer com que as regras da administração pública sejam compatíveis com a Constituição de 1988. O grupo terá até abril de 2025 para elaborar a proposta de revisão do decreto-lei.
Além da portaria e da comissão, o Ministério da Gestão e Inovação considera outras medidas, como o concurso nacional unificado, a realização de dimensionamento, quantificação e definição dos perfis mais adequados dos servidores, assim como novas normas para aperfeiçoar a política nacional de desenvolvimento de pessoas, como a comprovação da “reforma administrativa já em andamento.”
MGI prevê alongar tempo para chegar ao topo da carreira, além de salários iniciais mais baixos
Na opinião da ministra da Esther Dweck, passados quase dois anos do terceiro mandato de Lula, o Congresso estaria mais disposto a negociar a reforma administrativa com o Executivo.
Gabriel Fongaro vê por outra perspectiva: “Ainda há muita resistência em afetar os servidores atuais e, por essa razão, o melhor caminho seria propor algo apenas para os futuros servidores. Isso seria possível já que ‘a reforma é estrutural’ e, portanto, teria como alvo o médio prazo”.
Dentre os principais pontos defendidos pela ministra estão a redução dos salários iniciais dos servidores e uma ampliação do prazo de progressão na carreira, o que faria com que levassem mais tempo para chegar aos salários mais elevados. Mesmo assim, até o momento o ministério não apresentou quaisquer projeções dos impactos econômicos dessas medidas.
Na avaliação de Fongaro, as medidas são acertadas, pois há uma grande discrepância entre o funcionalismo público e a iniciativa privada no Brasil. “O servidor público inicia a carreira com salários elevados e a progressão, muitas vezes, é automática. Trazer maior meritocracia e reduzir a rigidez dos contratos tem benefícios econômicos e traz maior justiça social”, afirma.
Mesmo diante de possíveis impactos positivos no orçamento e controle fiscal do governo, Gabriel Leal de Barros avalia que, independente do formato da reforma administrativa, o país precisa avançar em outras medidas no sentido da contenção de despesas.
“Além da reforma administrativa, o país precisa e tem largo espaço para avançar em outras medidas pelo lado da despesa, notadamente no âmbito do vetor DDD (desvincula, desindexa e desobriga). Em termos relativos, quando comparado com outros países, o orçamento do Brasil é excessivamente rígido (cerca de 95%) e isso preciso ser endereçado de forma tempestiva e com senso de urgência”, diz.
Regular supersalários pode ser uma aposta para redução de gastos
Apesar de não ser citada como parte integrante da reforma administrativa pelo governo, uma das medidas previstas para contenção de gastos é a revisão dos supersalários do funcionalismo. Atualmente, o teto para os salários nos âmbitos federal, estadual e municipal é o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal, ou seja, R$ 44.008,32.
Atualmente, está em vigor uma regra, adotada pelo Ministério da Economia em 2021, que estipula esse teto máximo para cada um dos rendimentos que um servidor público venha a ter. Pela regra, um servidor aposentado que seja chamado para assumir um cargo comissionado, não pode ter nem o salário e nem a aposentadoria ultrapassando os R$ 44 mil, embora a soma de ambos os rendimentos possa ser maior que esse valor.
Nesse caso, de um máximo de R$ 44 mil, se fosse considerado um teto único para os rendimentos de forma conjunta, a remuneração máxima teria um limite de R$ 88 mil, por exemplo. Isso sem contar os “penduricalhos” que não são computados no teto, como auxílio-moradia e outros.
À época, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que seguia uma regra estabelecida pelo próprio STF em 2017. Segundo o Supremo, a Constituição permite o exercício simultâneo de cargos e, por isso, não se pode impedir a remuneração por algum deles.
“Caso fosse considerado um teto único, haveria enriquecimento sem causa do Poder Público e violação ao princípio da isonomia, já que servidores desempenhando a mesma função seriam remunerados diversamente pelo seu exercício”, decidiu a Corte.
O entendimento se aplica a alguns casos de dupla vinculação, como de professores, profissionais da saúde e aposentados em cargos comissionados, entre outros. Depois dessa decisão do STF, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Advocacia-Geral da União (AGU) proferiram decisões no mesmo sentido.
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Nova regra para barrar os supersalários pode ser ineficaz
Em julho de 2021, logo após o início da vigência da regra estabelecida pelo Supremo para os supersalários, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 6.726/2016, que limitava rendimentos. Por ter sofrido alterações, o texto precisou voltar para deliberação do Senado como o substitutivo PL nº 2.721/2021, onde até hoje aguarda relatoria da Comissão de Constituição e Justiça.
O Centro de Liderança Pública (CLP) estima que a proposta possa gerar economia de R$ 5 bilhões por ano. Segundo Bruno Carazza, professor associado da Fundação Dom Cabral e autor dos livros O País dos Privilégios e Dinheiro, Eleições e Poder, os gastos com supersalários no funcionalismo podem chegar a R$ 20 bilhões.
Um ponto a ser destacado é que o PL nº 2.721/2021 elenca um total de 32 exceções nas quais o teto não deve incidir. Gabriel Leal de Barros afirma que, por essa razão, a última versão da proposta não deixa de ser uma “contrarreforma administrativa”, dada a enorme quantidade de exceções que acabam por ampliar os privilégios no serviço público federal.
“O cumprimento do limite remuneratório do serviço público tem potencial para economizar, de acordo com as nossas estimativas, algo entre R$ 4,5 bilhões e R$ 7,5 bilhões por ano na versão original da proposta”, afirma o economista.
Conforme noticiou a Gazeta do Povo, nota técnica do Movimento Livres corrobora a visão do economista e alerta que a aprovação das 32 exceções que constam no PL 2721/2021 pode legalizar benefícios que “inflacionam a remuneração dos servidores”, o que perpetuaria “injustiças em relação à renda média dos brasileiros e mesmo de outros servidores”, além de elevar os gastos com o funcionalismo.
A Gazeta do Povo procurou o Ministério da Gestão e Inovação para obter mais informações sobre a reforma administrativa, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto a manifestações da pasta.
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