Eu não sei você, mas algo dentro de mim se remexe quando penso na ideia de uma banana presa com fita adesiva em uma parede sendo vendida por US$ 6,2 milhões, ou seja, mais de R$ 36 milhões. Uma obra de arte conceitual, dizem. Um “comentário sobre o que valorizamos”, explicam. E ainda assim, ao ouvir essa história, não consigo evitar refletir sobre o que realmente estamos valorizando.
Enquanto o artista Maurizio Cattelan transforma uma fruta comum em um ícone do mercado de arte, e o comprador, o investidor de criptomoedas Justin Sun, adquire por uma quantidade que supera a compreensão de muitos, milhares de pessoas ao redor do mundo lutam para ter o básico para a sobrevivência. Uma banana a menos na fruteira de alguém não faria falta. Mas é uma banana que custa R$ 36 milhões? Essa quantia poderia mudar o destino de milhares, talvez milhões.
Imagine, por um instante, como esse dinheiro poderia ser redirecionado. Quantas cestas básicas poderiam alimentar famílias que enfrentam fome crônica? Segundo estimativas, com R$ 36 milhões, seria possível adquirir mais de 1 milhão de cestas básicas, o suficiente para sustentar inúmeras comunidades por meses.
E hospitais? Esse valor poderia financiar a construção de pelo menos dois hospitais regionais de médio porte, fornecidos para atender emergências e oferecer tratamento para doenças que ainda matam tantas por falta de recursos. Escolas? Esse mesmo montante poderia viabilizar a construção de bolsas de unidades escolares modernas, com infraestrutura para acolher e formar crianças que, hoje, têm a educação como um sonho distante.
Não se trata de uma crítica rasa à arte ou à liberdade de expressão de artistas e colecionadores. A arte tem um poder transformador, capaz de questionar as normas vigentes estabelecida e abrir diálogos necessários. Mas aqui, o que se vê é um símbolo escancarado da desconexão entre duas realidades: a abundância de poucos e a miséria de muitos.
Quando um assunto tão efêmero quanto uma banana se torna o centro de um leilão milionário, somos obrigados a nos perguntar: o que estamos nos comunicando como sociedade? Para Cattelan, “The Comedian”, como batizou a obra, é uma crítica ao mercado de arte, ao consumo desenfreado, talvez até ao próprio comprador que desembolsou essa quantidade. Mas será que essa crítica se perde no caminho, especialmente quando a performance, o debate e o escândalo passam a ser mais valiosos que o impacto que gera com a mesma soma?
Há algo profundamente perturbador em perceber que, enquanto nos deparamos com manchetes sobre fome, crises de saúde e falta de acesso à educação, há quem veja sentido em gastar milhões em um conceito, um certificado, uma banana. É irônico, para dizer o mínimo. E, para muitos, ofensivo.
Não é a primeira vez que a arte conceitual choca o público. Vamos relembrar de Duchamp e seu mictório transformado em “Fonte”, ou mesmo do vaso sanitário de ouro maciço do próprio Cattelan, batizado de “América”. Mas talvez o que mais incomode nesse caso específico seja a distância assombrosa entre a possibilidade de agir no mundo real e a escolha de não o fazer. Entre dar pão aos que têm fome e encher os olhos dos que já têm tudo.
Eu não quero ser simplista. A arte não existe para resolver os problemas do mundo. Mas será que não deveria, pelo menos, instigar um pouco mais de responsabilidade em quem tem o privilégio de acessá-la e financiá-la? Talvez a questão não seja sobre a banana, mas sobre quem pode escolher ignorar tudo o que está ao redor dela. O preço de R$ 36 milhões não é apenas um valor financeiro —é também o custo de uma oportunidade perdida. E isso, para mim, é mais difícil de digerir do que qualquer comentário irônico ou conceito artístico.
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