O MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas recomendou, em documento do último dia 14, que a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) interdite o uso de uma área onde há indícios de presença de indígenas isolados.
O local está a 31 km, em linha reta, de um empreendimento de prospecção de gás natural, na região de Silves (AM) e Itapiranga (AM), diz documento da Funai.
O empreendimento de óleo e gás é o maior a cargo de uma empresa privada —a Eneva— em campos que não estão no mar, mas em terra. A Eneva faz avançar em ritmo acelerado a exploração de combustíveis fósseis na amazônia brasileira, mais especificamente no leste do Amazonas.
A área onde houve avistamento de indígenas isolados, conforme registros levados em conta pela Funai, é alvo de manejo de madeira, a cargo da empresa Mil Madeiras Preciosas, segundo a recomendação do MPF.
A exploração de poços de gás e óleo é feita em outras áreas que também atendem à exploração madeireira pela Mil Madeiras.
Procurada pela reportagem, a Eneva afirma que a Procuradoria age para impedir o empreendimento baseada em “elemento frágil”. Também contatadas, Funai e Mil Madeiras não comentaram até a publicação deste texto.
O pedido para que a Funai faça “imediata interdição” da área com possível presença de indígenas isolados —que não estão em contato com não indígenas ou com outros indígenas—, na região do igarapé Caribi e afluentes, cita potenciais riscos ao grupo avistado.
O instrumento a ser usado, conforme o MPF, é a edição de uma portaria de restrição de uso. O tema já é tratado dentro da Funai. Os procedimentos ainda estão em curso e não há previsão de quando uma portaria do tipo seria editada.
As portarias de restrição de uso servem para proteção dos indígenas e dos territórios até a demarcação. Assim, oficialmente, fica vedada a entrada ou circulação de pessoas que não sejam da Funai.
Os procuradores da República recomendam ainda interdição de uma segunda área no Amazonas, na região do Mamoriá-Grande, também por presença de indígenas isolados, sem relação com o local próximo a Silves e Itapiranga.
No caso dos isolados do Caribi, o MPF afirma que documento da Funai aponta ser alta a probabilidade de presença de indígenas em isolamento voluntário. “A região é alvo de manejo madeireiro e, ao mesmo tempo, há em curso a instalação de empreendimento que visa à prospecção de gás pela Eneva, colocando duplamente a vida destes povos isolados em extremo risco”, diz.
Reportagem publicada pela Folha em 23 de agosto mostrou a expansão do empreendimento da Eneva numa parte da amazônia ocidental e detalhou o conteúdo de um documento da Diretoria de Proteção Territorial da Funai, elaborado em 19 de junho.
O avistamento de uma família, com possibilidade de que seja de um povo em isolamento voluntário, foi feito pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) de Itacoatiara, que comunicou a Funai. Técnicos do órgão federal fizeram, então, um trabalho de campo em busca de indícios sobre os isolados.
A diretora de Proteção Territorial, Maria Janete Albuquerque, disse no ofício que vestígios foram encontrados e que o grupo seria “altamente vulnerável” em razão da prospecção de gás e do manejo de madeira.
“Recomendamos fortemente a suspensão imediata das atividades de exploração de gás realizada pela empresa Eneva e do plano de manejo florestal por parte da Mil Madeiras Preciosas”, sugeriu a diretora da Funai. Áreas usadas pela Mil Madeiras se confundem com áreas usadas pela Eneva, como indicam placas nos lugares de exploração.
Em nota à Folha, a Eneva afirma que o MPF move ações “para interromper as operações do empreendimento Azulão” desde 2021. No entanto, a empresa venceu na Justiça porque “cumpre e supera as normas legais aplicáveis”.
Para a Eneva, “a suposta prerrogativa de presença de indígenas isolados nesta região, que é altamente antropizada, não tem lastro em nenhuma documentação oficial”.
A empresa destaca que garante cerca de 70% do abastecimento de energia elétrica de Roraima, estado que não é integrado ao Sistema Interligado Nacional, e que “apenas suposto avistamento realizado recentemente por integrantes de organização não governamental é elemento frágil para justificar a interrupção de operações”.
A Eneva, companhia com faturamento bilionário e que tem BTG Pactual, Cambuhy, Dynamo, Atmos e Partners Alpha em sua estrutura societária, aluga terrenos de agricultores na região de Silves e Itapiranga para sua atividade.
Esses agricultores dizem ter perdido sossego e espaço em troca de preços baixos do aluguel. A Eneva afirma pagar valores acima dos praticados no mercado.
Há também conflitos com indígenas muras na região do chamado campo Tambaqui. Quatro poços estão em território reivindicado por famílias muras para a demarcação da Terra Indígena Gavião Real.
A Eneva afirma que não foram identificadas terras indígenas a menos de 25 quilômetros dos empreendimentos. “Foram consideradas todas as terras descritas nas bases de dados da Funai.”
Um representante da Eneva disse, em agosto de 2023, em reunião com o MPF, que “a Funai precisa dizer onde estão os indígenas”.