A visita do presidente chinês Xi Jinping ao Brasil coroou um novo patamar na relação entre os dois países. Num evento que chamou atenção por protocolos, honrarias e forte esquema de segurança, foram celebrados acordos de cooperação que prometem abrir espaços para novos produtos agrícolas brasileiros no mercado da China, nosso principal parceiro comercial.
O impacto maior do encontro, no entanto, se deu pela não adesão do Brasil ao principal projeto chinês de investimentos no exterior, o “Cinturão e Rota”, também conhecido como a Nova Rota da Seda.
Abreviação de dois projetos chineses – o Cinturão Econômico da Rota da Seda e Rota da Seda Marítima do Século 21 – o nome é uma referência à rede de rotas comerciais que, na Antiguidade, conectava o Oriente ao Império Romano. O tecido luxuoso inventado pelos chineses conquistou os europeus e se tornou o principal produto de comercialização.
Como no passado, o projeto ambicioso, chamado em inglês de Belt and Road Initiative (BRI), quer conectar logisticamente a China a países da Ásia, Europa e África, por meio de financiamentos em infraestrutura nos diversos países.
Dessa forma, a China pretende facilitar o escoamento da produção industrial, ampliar mercados e aumentar sua projeção política, econômica e cultural no mundo.
Contrariando as expectativas do gigante asiático, porém, o Brasil optou por não aderir formalmente ao plano e concordou apenas com um plano de cooperação entre a BRI e projetos de interesse do Brasil.
“Estabeleceremos sinergias entre as estratégias brasileiras de desenvolvimento, como a Nova Indústria Brasil (NIB), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Programa Rotas da Integração Sul-Americana e o Plano de Transformação Ecológica, e a Iniciativa Cinturão e Rota”, disse o presidente brasileiro em seu discurso.
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Cautela na negociação com chineses veio do Itamaraty
A cautela na negociação com os chineses foi aconselhada pelo Itamaraty, seguindo a tradição diplomática brasileira de evitar alinhamentos diretos com países ou blocos econômicos.
A ideia é preservar as relações com os Estados Unidos, que têm na China seu principal concorrente econômico e adversário geopolítico no mundo. Previsões anteriores à pandemia indicavam que o país asiático poderia ultrapassar a economia americana até 2028.
“Foi bem desenhado o que o Brasil fez porque ele pode usufruir de todos os benefícios do Cinturão e Rota, incluindo recursos, fluxo comercial e infraestrutura, mas sem formalizar uma adesão, algo que pode melindrar os Estados Unidos”, afirma Lívio Ribeiro, pesquisador associado do FGV Ibre e sócio da BRCG Consultoria.
Informalmente, os americanos já haviam mandado recado ao governo brasileiro. A Representante de Comércio dos Estados Unidos, embaixadora Katherine Tai, que esteve em novembro num evento em São Paulo, chegou a alertar sobre possíveis desdobramentos.
“Se o Brasil estiver considerando a Iniciativa do Cinturão e Rota, precisará levar em conta não apenas seu próprio apetite a risco e estratégias de gestão de risco, mas também os perfis de risco e considerações de outros países, especialmente de parceiros importantes”, disse em entrevista à Folha de S.Paulo.
Brasil pode usar aproximação com a China para extrair concessões dos EUA
Para Vinícius Rodrigues, professor de Economia e Relações Internacionais na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e doutor em Relações Internacionais pelo Nuffield College, a saída do Brasil para a questão foi estratégica.
Ao estabelecer apenas tratados de cooperação, o Brasil tenta ficar com o “bônus” de receber recursos necessários para investimentos, “sem arcar com o ônus” de alinhamento político. Além disso, pode usar o episódio como barganha em acordos com outros parceiros comerciais.
“[A aproximação com a China] pode ser usada para melhorar nossas relações comerciais com o próprio Ocidente, em especial os EUA”, afirma Rodrigues, lembrando que as tratativas dos americanos em relação à ampliação do comércio com o Brasil não têm sido “significativas”.
O acordo com a China poderá, segundo ele, favorecer negociações bilaterais após a posse do presidente eleito Donald Trump, que já revelou a intenção de impor tarifas de importações de produtos ao redor do mundo.
“O ideal é usar o interesse da China para extrair o máximo de concessões de ambos os lados”, defende Rodrigues. “Talvez assim o Ocidente ofereça algo em troca para o Brasil em termos de infraestrutura ou mesmo em tecnologia, com parcerias mais substantivas, como honestamente nunca ofereceu.”
Nova Rota da Seda já alcança 147 países
Desde que foi lançada em 2013, no início do mandato de Xi, a BRI já consumiu US$ 1,029 trilhão em obras em países dos cinco continentes, segundo dados do Council on Foreign Relations (CFR), o centro de estudos norte-americano sobre relações internacionais. Desde então, 147 países já aderiram ou têm interesse em aderir ao plano.
Na América Latina, entre os 20 países que já integram o projeto, o destaque vai para o Peru, onde foi inaugurado em novembro um megaporto na cidade de Chancay, 80 quilômetros ao norte de Lima.
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A Cosco Shipping Company, estatal chinesa de transporte de containers, financiou a obra, que consumiu US$ 3,4 bilhões (cerca de R$ 19,7 bilhões) ao longo de oito anos.
A ideia é transformar o Peru em importante centro logístico para o comércio entre o continente sul-americano e a Ásia, reduzindo o período de transporte de mercadorias de 40 para 28 dias.
O Brasil poderá usar o porto para escoar sua produção agrícola, em especial de soja, para a China. A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, chegou a visitar o Peru em março para “conhecer os planos e estratégias para impulsionar as rotas de integração sul-americana”.
“[O acesso ao porto] é um exemplo de vantagem que o Brasil pode usufruir, beneficiando sobretudo o agronegócio, que depende muito do mercado chinês”, afirma Rodrigues. “A redução do tempo e do custo de transporte vai aumentar a competitividade de nossos produtos, inclusive para outros destinos da costa do Pacífico, criando mais uma vantagem no comércio com os Estados Unidos.”
China “finca bandeira” na América Latina
Para Lívio Ribeiro, o Brasil precisa pegar “a rebarba” do interesse chinês no continente, que tem “tirado o sono” dos Estados Unidos.
“Parece relativamente claro que a China ‘fincou a bandeira’ sobretudo nos países andinos. Está espalhando seus tentáculos pelo histórico quintal americano”, diz. “Há muito tempo os Estados Unidos ignoram a América Latina, para nada abaixo do México. Agora eles devem querer retomar sua zona de influência e isso é interessante para nós, que conseguimos, sem a adesão ao projeto chinês, manter uma aproximação respeitosa”.
Rodrigues compartilha a visão. “[Se aderisse à Rota da Seda], aí sim, o país estabeleceria um grau de aproximação muito comprometedora com a China”, diz.
Para ele, é “muito arriscado se alinhar com qualquer país, ainda mais com a China”. “Isso é indiscutível. Porque todos os países que fazem parte do projeto acabam sofrendo pressão para que não tenham apenas uma colaboração econômica, mas uma colaboração política com o país. Até mesmo os europeus não conseguiram escapar disso. Um exemplo é a Itália, que aderiu ao projeto e depois saiu, lembra Rodrigues.
A Itália aderiu à BRI em 2019 e saiu em dezembro de 2023, por esforços da primeira-ministra Giorgia Meloni.
Nova Rota da Seda tem dimensão antiocidental
Na avaliação dos especialistas, a posição do Brasil vai exigir esforços diplomáticos para não entrar em confronto com interesses ocidentais.
“A Nova Rota da Seda tem uma dimensão política forte e uma dimensão política antiocidental”, diz Rodrigues. “O que o Brasil tem que evitar nesse momento, é tomar partido e muito menos um partido contra o Ocidente.”
A preocupação é amplificada pelo momento de tensão geopolítica mundial em que iniciativas como o Brics – grupo de emergentes que tem entre os participantes China e Rússia, históricos rivais americanos – questionam a hegemonia dos EUA e acenam com um modelo econômico e político multipolarizado.
Para Rodrigues, a permanência e empenho do Brasil no fortalecimento dos Brics não significa, por si só, uma postura antiamericana.
“Se dependesse da China e da Rússia, isso poderia ser verdade”, diz. “Mas para Brasil, Índia e África do Sul não é, em hipótese alguma, interessante ter um discurso contra os Estados Unidos e a Europa. O Brasil, inclusive, conseguiu barrar a entrada da Venezuela no bloco, em sintonia com interesses americanos.”
O professor observa que Índia e China são países inimigos, mas permanecem no bloco. A Índia compra petróleo da Rússia e é cortejada pelos americanos e pelos europeus justamente para conter a China. “Vivemos num mundo onde vem crescendo a ideia de alinhamentos múltiplos”, afirma o economista. “Enquanto for possível mantê-los, melhor para países como o Brasil”.
Críticos do alinhamento do Brasil aos países do bloco argumentam que há apoio velado à Rússia na guerra contra a Ucrânia e aos terroristas do Hamas na guerra de Israel contra o terror na Faixa de Gaza. A China financia o Irã que, por sua vez, financia o Hamas.
“O Brasil não está entrando num pacto contra o Ocidente, participando dos Brics”, avalia Ribeiro. “Não compro a tese de que estamos aderindo ao ‘eixo do mal’. No entanto, a foto da turma está ficando mais feia, é inequívoco. Dizer que a gente tem alinhamento ideológico com o Irã, Arábia Saudita e Venezuela piora as coisas. Estamos andando com uma galera estranha.”