Uma ampla rede de armadilhas para peixes, abrangendo uma área de mais de 40 quilômetros quadrados em Belize, na América Central, pode ter sido um dos pontapés iniciais para o surgimento da civilização maia, sugere um novo estudo.
A partir de uns 4.000 anos atrás, as estruturas teriam ajudado a alimentar uma população de algumas dezenas de milhares de pessoas. Isso pode ter facilitado o processo de fixação permanente no território e o aumento da complexidade social que, vários séculos mais tarde, desembocaria nas cidades-Estado e pirâmides maias em Belize e nos países vizinhos, como a Guatemala e o México.
As conclusões saíram na última sexta-feira (22) no periódico especializado Science Advances. Assinam o trabalho, entre outros pesquisadores, Eleanor Harrison-Buck, do Departamento de Antropologia da Universidade de New Hampshire (EUA), e Samantha Krause, da Universidade do Estado do Texas.
A equipe usou drones, escavações tradicionais e uma série de outras técnicas para estudar a antiga ocupação humana de uma região de Belize que lembra o pantanal brasileiro –ou o que seria o pantanal se ele estivesse perto da costa do Brasil.
Designada pela sigla CTWS (Santuário da Vida Selvagem Crooked Tree), a área é cortada por uma série de rios que conectam lagunas de água doce e salobra, além de incluir áreas pantanosas, que passam por períodos anuais de cheia e seca. Peixes, moluscos, tartarugas e aves pescadoras (incluindo até tuiuiús, como os que existem no pantanal brasileiro), entre outros membros de uma fauna muito diversificada, povoam a área.
As estruturas analisadas pelos pesquisadores no novo estudo já eram conhecidas antes, mas a interpretação tradicional é que elas fossem usadas para a irrigação de cultivos típicos da região antes da chegada dos europeus, em especial o milho. Também se acreditava que eles fossem relativamente recentes, datando da época do auge da civilização maia (mais ou menos entre os anos 250 e 1000 d.C.), quando, de fato, a produtividade agrícola da área era bastante alta.
Os novos dados, entretanto, indicam que essa interpretação é improvável, a começar pelo fato de que não há associação nenhuma entre as estruturas e o pólen de milho e outras grandes lavouras nativas.
As imagens obtidas com ajuda de drones revelam um total de 167 estruturas lineares escavadas no território pantanoso, cada uma delas com mais de 600 m de comprimento e com ao menos algumas dezenas de centímetros de profundidade (provavelmente mais do que isso no passado, uma vez que elas foram se enchendo de sedimentos).
O que é ainda mais intrigante é que esses padrões escavados de zigue-zague, que a equipe arqueológica identifica como canais, costumam desembocar em áreas que formam pequenas lagoas ou açudes. Ainda não está claro se as lagoas também são artificiais, mas os canais claramente o são, dizem os pesquisadores.
A ideia é que as escavações foram feitas para capturar os peixes que iam desovar nas regiões alagadas – quando a água baixava quando chegava o período da seca, eles seriam “canalizados” rumo aos açudes e capturados com mais facilidade, algo que, segundo os moradores atuais da região, costuma acontecer ainda hoje.
“Nossa suspeita é que os peixes fossem capturados nessas pequenas lagoas com redes, cestos ou lanças”, disse a coordenadora do estudo à Folha. “Embora muitos desses artefatos não costumem ficar bem preservados no registro arqueológico, já encontramos pontas de lança serrilhadas em sítios arqueológicos próximos com a mesma idade, e é provável que elas fossem usadas para arpoar peixes.”
Escavações na borda dos canais (no meio deles é mais difícil porque, após 1 m de profundidade, as estruturas ficam cheias de água que vem do subsolo) revelaram que o início das escavações data de 2000 a.C.
E a idade talvez seja bastante significativa: ela tem boa correlação com um momento de alteração climática em que a região deixou de ficar alagada durante o ano todo e passou a ser dominada pelo regime de cheias e seca que se vê ali até hoje.
A proposta da equipe de arqueólogos é que a técnica da construção de canais (e, talvez, açudes) foi uma resposta ao surgimento da alternância entre fases do ano úmidas e secas. Com ela, os peixes podiam ser concentrados para fácil captura e abate nos meses de bonança, sendo talvez secados e salgados para consumo mais lento. Eles estimam que seria possível sustentar uma população entre 15 mil e 25 mil pessoas na região com esse sistema.
Ao menos nessa área de Belize, esse processo teria sido o empurrão necessário para a vida mais sedentária que, mais tarde, levou ao aumento da complexidade social maia.