Em uma cena emblemática do filme “Ainda Estou Aqui“, de Walter Salles, um fotógrafo incumbido de registrar um retrato da família Paiva para ilustrar uma matéria jornalística pede uma foto “menos feliz”. Mas Eunice Paiva não se rende: “Nós vamos sorrir. Sorriam!”. Ela e seus cinco filhos sorriram para a foto, apesar da dor profunda que cada um carregava.
Corta para novembro de 2022. Um grupo de pessoas se reúne para tentar reverter o resultado das eleições e evitar a posse de Lula. O plano, de acordo com a Polícia Federal, incluía “neutralizar” (= assassinar) o presidente eleito, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do STF Alexandre de Moraes.
Mas Eunice Paiva ainda está aqui. Quando o risco de uma ruptura democrática parecia iminente, a democracia se mostrou mais sólida. Graças às Eunices e apesar do choro das Marias e Clarices [Herzog], das torturas e das famílias destroçadas; graças aos sorrisos que não se renderam no passado, às fortalezas humanas, à coragem e à recusa de se silenciar diante da violência e repressão. Ainda estamos aqui graças aos que não desistiram —o não desistir é a nossa maior força—, aos artistas e intelectuais que não se calaram, a Chico Buarque, que também insistiu em sorrir na foto através da música e nos ajudou a acreditar que, apesar deles, “o outro dia” menos sombrio aconteceria.
Essa semana foi histórica, um desses “outros dias”. A prisão de quatro militares e um policial federal e o indiciamento de 37 pessoas, incluindo o ex-presidente, que, segundo as investigações, tentaram orquestrar um golpe sangrento, foi a resposta contundente do Brasil à ameaça à sua democracia.
Mas só isso não garante. Para se assegurar uma democracia plena, não basta que a Corte Máxima puna golpistas: é essencial que nunca deixe de agir com transparência, seja apartidária, siga os ritos processuais, preserve a autonomia dos poderes e sempre garanta as liberdades individuais. A democracia é o governo do povo; o STF, o seu guardião.
O senador Flávio Bolsonaro tem razão: não temos como criminalizar pensamentos de perdedores inconformados dispostos a tudo. Mas quando se tenta romper o Estado de Direito, a coisa vai para um outro lugar, onde matar se torna um “meio legítimo” —assim como foram consideradas legítimas as torturas, os sequestros e os assassinatos no período da ditadura. São atos que transcendem o campo político e ultrapassam as fronteiras do debate ideológico.
Felizmente, a verdadeira medida da solidez de uma democracia não está na ausência de ameaças, mas na capacidade das instituições de responderem com eficácia para impedir que essas agressões se concretizem.
A obra de Walter Salles é o “Feliz Ano Velho” da atualidade, o livro de Marcelo Rubens Paiva que chacoalhou os jovens da década de 1980 (entre os quais me incluo). O filme, que não poderia chegar em melhor momento, tem a mesma humanidade e causa o mesmo impacto do livro, ao mostrar uma parte do Brasil que os jovens só conhecem pelas páginas frias dos livros de história.
“Ainda Estou Aqui” não é uma aula, é uma lição. Quando se compreende a luta e os sacrifícios feitos para a conquista da democracia, todos se tornam cúmplices dela.
Eunice Paiva e a canção de Chico compartilham o mesmo coração: uma recusa em aceitar a escuridão como destino. E, juntas, sussurram ao futuro: “Apesar de vocês, ainda estamos aqui.”
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