É possível contar a história do Brasil a partir da figura do pardo. Termo presente na carta fundadora da nossa colonização redigida por Pero Vaz de Caminha, “pardo” se tornou símbolo maior da nossa suposta degeneração racial no século 19, então imputada à mestiçagem brasileira. No século 20, contudo, esse cenário se inverteu. O pardo passou a simbolizar a síntese positiva do povo brasileiro, parte central da apologia oficial à mestiçagem que se tornou hegemônica a partir dos anos 1930.
Com a crise desse imaginário nos anos 1980 e 1990, os significados da parditude se complexificaram ainda mais. A crítica ao mito da democracia racial levou uma série de sociólogos a mensurarem os efeitos da discriminação em nossa estrutura social, contestando a imagem de que o país não possuía racismo. Ademais, descobriram que as pessoas autodeclaradas pardas tinham índices demográficos muito mais próximos das pessoas pretas do que das brancas.
Isso serviu de base para que o movimento negro defendesse com relativo sucesso a ideia de que pretos e pardos deveriam ser tratados como um só grupo, como “negros”. Pródiga em articular a militância e produzir um diagnóstico do nosso racismo, essa fusão de categorias foi central para o avanço das políticas de cotas no Brasil, que hoje possui um dos maiores sistemas de ação afirmativa do mundo. Por outro lado, ela não ficou livre de controvérsia.
A pesquisa realizada pelo Datafolha evidencia essas complexidades. Representativa do território nacional, ela mostra que 96% dos autodeclarados pretos se reconhecem como negros, percentual que cai para 40% entre os autodeclarados pardos. Isto é, 60% dos pardos não se sentem à vontade em se declarar negros. Pretos e pardos se sentem mais discriminados em nossa sociedade, mas essa percepção é mais recorrente no primeiro grupo do que no segundo.
Lidos em conjunto, esses números podem soar irracionais. No entanto, eles refletem tendências históricas e dinâmicas sociológicas bem conhecidas.
De um lado, o racismo brasileiro obedece uma dinâmica colorista, em que pessoas mais escuras e com mais traços negros tendem a sofrer comparativamente mais racismo do que negros eventualmente mais claros. Logo, nada mais normal que pardos não coincidam totalmente em suas percepções com os pretos.
Do outro lado, pesquisas baseadas em entrevistas são sempre reféns do modo como as pessoas enxergam o mundo e suas identidades, o que nem sempre corresponde a uma visão acurada sobre o modo como elas são concretamente vistas ou tratadas. A bibliografia especializada indica que uma parte relevante dos 60% de pardos que não se veem como negros são, a rigor, categorizados como negros por outras pessoas.
Ainda assim, uma parcela das pessoas pardas não se vê e não é vista como negra, seja por conta de uma ascendência indígena, seja por conta de uma ascendência mestiça mais complexa, ou ainda devido à visão anacrônica de que “os brasileiros são todos pardos”.
De todo modo, essas complexidades não devem ser usadas para pôr em xeque as políticas de cotas. Mais do que uma política “identitária”, as cotas são medidas que visam mitigar os efeitos sociais da discriminação. E, para além das percepções dos autodeclarados pardos, as pesquisas ainda mostram que eles têm menos chances de ascensão social do que brancos, o que os coloca mais próximos dos pretos. Logo, eles devem ser incluídos nas políticas afirmativas, independentemente do modo sempre complexo e mutante como significam suas identidades raciais.