Ellen MacArthur é hoje uma das vozes mais ativas no combate à poluição plástica global e na promoção da chamada economia circular, que prega a eliminação de poluição e resíduos, o reaproveitamento de materiais e a regeneração da natureza.
A ex-velejadora britânica chegou ao tema de maneira inusitada. Em 2005, aos 28 anos, Ellen bateu o recorde como a pessoa mais rápida a dar a volta ao mundo sozinha a bordo de um veleiro. Ao longo dos 71 dias em que esteve só em alto-mar, ela diz ter desenvolvido uma consciência radical sobre o que significa ter recursos finitos: seu barco estava carregado com o mínimo essencial para a jornada, e não havia plano B.
“Percebi que nossa economia global não é diferente. Temos recursos finitos disponíveis e, ainda assim, nosso modelo econômico os consome. Isso não funciona no longo prazo”, explica ela à Folha.
Ellen, 48, criou uma fundação com seu nome para promover a mudança do modelo de economia linear —baseada na tríade extrair, produzir e descartar recursos— para o de economia circular.
A Fundação Ellen MacArthur patrocinou estudos sobre os fluxos de materiais até cair no plástico e descobrir que 32% dos 78 milhões de toneladas do material mais usado em embalagens no mundo escapavam do sistema de coleta e poluíam o meio ambiente —e apenas 2% são reciclados em materiais da mesma qualidade.
Nessa toada, até 2050, haverá mais plástico do que peixe nos oceanos, apontou relatório da fundação.
A estridência desses dados criou um alerta e motivou a formação de uma coalizão de empresas multinacionais dispostas a reduzir os danos de seus produtos embalados em plástico.
Provocou, ainda, um debate que lançou as bases para o Tratado Global de Combate à Poluição Plástica, da ONU (Organização das Nações Unidas), que chega à sua última rodada de negociações a partir desta segunda-feira (25), em Busan, na Coreia do Sul.
“Percebemos que era preciso mudar esse sistema trabalhando com o sistema”, conta Ellen.
Em 2018, a fundação reuniu gigantes como Coca-Cola, Danone, Nestlé, PepsiCo e Unilever no Compromisso Global, um acordo voluntário de redução da poluição plástica. Essas empresas hoje pedem que o tratado negociado por 193 países seja ambicioso e legalmente vinculante.
“Elas precisam que o sistema mude para que possam projetar materiais diferentes e um novo fluxo para eles. A voz delas precisa ser ouvida”, argumenta Ellen, que afirma ter mudado muitos de seus hábitos de vida desde sua epifania sobre o desperdício de recursos e a poluição do meio ambiente.
“Mas sei que mudanças de hábito individuais não vão mudar o sistema global de plástico. E hoje a minha energia vai para que as mudanças sejam sistêmicas.”
Empresas em geral estão preocupadas com produção e lucro e têm histórico ambiental ruim. Por que se comprometeram com uma mudança no uso de plásticos que inicialmente traria mais custos a elas?
Porque perceberam que não querem que a poluição aconteça e que nosso sistema linear vaza esses materiais para o ambiente. Essas empresas foram capazes de implementar por si mesmas algumas das mudanças: o uso de conteúdo reciclado aumentou em 20% no grupo de signatários do compromisso, que superaram em muito o restante do mercado.
Essas empresas sabiam que somente trabalhando todas juntas o sistema poderia mudar. É por isso que tão rapidamente o Compromisso Global levou a discussões em torno de um tratado global.
Gigantes como PepsiCo, Coca-Cola e Unilever estão no Compromisso Global, mas ainda são as maiores poluidoras plásticas do planeta. Por quê?
Elas mudaram. Superaram o restante do mercado quando se trata de conteúdo reciclado e design para circularidade em partes de seus negócios. Mas, em outras partes, onde estão os sachês de formato pequeno, por exemplo, elas precisam de políticas ambiciosas e regras globais.
Sem um tratado global, outra empresa comprará suas máquinas e venderá o mesmo produto da mesma maneira. Uma vez que regras globais ambiciosas sejam estabelecidas, todas as empresas jogarão no mesmo campo. É por isso que as empresas estão pedindo essas regras globais.
Como os países estão se posicionando em relação ao tratado nesta reta final?
Chegar a um acordo entre 193 países é importante e complicado. Existem países mais ambiciosos, menos ambiciosos e aqueles que estão esperando.
No Brasil, vimos um alinhamento entre o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Indústria sobre o que é um plástico problemático, quais são os produtos químicos preocupantes e como eles podem ser eliminados. Isso mostra uma compreensão do governo brasileiro de que a indústria precisa trabalhar com o meio ambiente.
Mas os países não podem fazer isso sozinhos porque as empresas não podem projetar produtos diferentes para cada país. Precisamos de regras globais para permitir o investimento necessário, não apenas no design inicial do material que entra no sistema, mas também em infraestrutura para reciclá-lo.
A reciclagem do plástico então é uma ilusão?
Os números de reciclagem são incrivelmente baixos. Embora globalmente 18% das embalagens plásticas sejam coletadas para reciclagem, 8% são perdidas no processo de triagem. E 8% dos 10% restantes foram reciclados em um material de qualidade inferior. E esse plástico reciclado em algo de menor valor, da próxima vez, vira lixo.
Por que projetamos embalagens e produtos que sabemos que se tornarão lixo? Porque é mais barato. Mas, através do design, podemos construir um sistema que funcione e uma economia circular para plásticos.
O tratado tem sido chamado de “Acordo de Paris dos plásticos”. Essa é uma boa associação já que o financiamento do Acordo de Paris não está acontecendo como deveria?
Quando se trata de financiamento, é importante que o tratado seja o mais específico possível porque é preciso estabilidade para se investir.
Temos uma coalizão de empresas que representam parte significativa do mercado global dizendo que precisam de regras globais. Elas não estão na mesa de negociações porque os tratados são entre os 193 países, mas sua voz precisa ser ouvida porque elas são a economia que precisa ser consertada.
Você já disse que o mercado é reticente a uma abordagem na qual as empresas seriam forçadas a mudar de modelo por meio de impostos, multas e taxas. Quais são as alternativas?
Uma das coisas que a coalizão está pedindo é a EPR, sigla em inglês para responsabilidade estendida do produtor. É um imposto sobre plásticos que financiará um sistema para reciclar os materiais que eles colocam no mercado. A EPR é um instrumento, uma alavanca que pode ser usada para fazer o sistema funcionar.
Como uma carreira de velejadora de regatas de volta ao mundo a levou a se preocupar com os recursos naturais e a economia global?
Desde os quatro anos de idade, eu queria velejar pelo mundo. Consegui, através de muito trabalho árduo, tornar esse sonho realidade. Se você veleja ao redor do mundo sem parar, como eu fiz, precisa colocar no barco tudo o que acha que vai precisar para sobreviver por três meses. Mas tem de ser o mínimo porque o barco precisa ser o mais leve possível.
Quando você inicia a regata, o que você tem no barco é tudo o que existe. E isso desenvolve uma compreensão avassaladora da definição de finitude. Você não pode parar e comprar mais se está a 2500 milhas da cidade mais próxima. Com isso, entende o que é ter recursos finitos. Ao desembarcar na linha de chegada, percebi que nossa economia global não é diferente.
Que hábitos você mudou desde que criou a sua fundação?
Eu mudei tudo em minha vida nesses 15 anos. Compro minhas coisas de segunda mão, dirijo meu carro elétrico, vou a pé sempre que posso, pedalo onde puder.
Mas percebi que mesmo que eu mudasse tudo em minha vida, isso não mudaria o sistema, que hoje não funciona. É como o Compromisso Global, que é ótimo, mas não pode mudar tudo sem um tratado global. Hoje a minha energia vai para que as mudanças sejam sistêmicas.
RAIO-X
Ellen MacArthur, 48
Velejadora britânica, bateu o recorde de circum-navegação solo mais rápida da história em 2005. Em 2009, criou a Fundação Ellen MacArthur, que se dedica à promoção da economia circular no planeta.