O MPF (Ministério Público Federal) pediu à Justiça Federal, por meio de ação protocolada nesta terça-feira (19), a suspensão de forma emergencial do projeto de crédito de carbono do Governo do Amazonas em unidades de conservação do estado.
A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) também é ré na ação civil pública, “para acompanhar o devido respeito aos direitos indígenas potencialmente violados”. Em abril, a entidade reforçou orientações para os indígenas não negociarem e não participem de negociações e tratativas envolvendo a comercialização de créditos de carbono.
Segundo o documento, as comunidades indígenas da região não passaram pela devida consulta prévia, conforme direito garantido na convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). No edital criado pela gestão do governador Wilson Lima (União Brasil), as empresas selecionadas deveriam realizar a escuta.
Procurados pela Folha para comentarem a ação, o Governo do Amazonas e a Funai não responderam até a publicação da reportagem.
“O MPF fez este pedido pois o Governo do Amazonas e a Sema/AM [Secretária de Estado de Meio Ambiente] não respeitaram os direitos destes povos indígenas e tradicionais e lançaram este projeto sem conversar, sem dialogar, sem consultá-los”, diz trecho da petição, que cobra transparência.
“O MPF pede que a Justiça Federal faça amplos debates públicos sobre o tema, e que se cancele ao final do processo (sentença de mérito) os editais e atos da Sema/AM para permitir que os povos indígenas e tradicionais tenham liberdade de escolher e definir os projetos para seus territórios.”
O instrumento que permite o mecanismo de créditos de carbono é o REDD+, desenvolvido no âmbito da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima. Um crédito equivale a uma tonelada de CO2 que deixa de ser emitida para a atmosfera em razão do desmatamento que foi evitado.
De acordo com o Ministério Público Federal, entre os problemas, estão o fato de empresas e órgãos poderem abordar de forma direta lideranças de terras indígenas ou unidades de conservação para promover os projetos de crédito de carbono/REDD+, prometendo benefícios financeiros.
Esse processo, afirma a Procuradoria, pode não envolver toda a comunidade e frequentemente gera discussões e até conflitos graves nas aldeias em meio à assinatura de contratos de longo prazo para gerar créditos de carbono.
Os povos indígenas, ribeirinhos e extrativistas da região vivem da caça, pesca e extração de castanha, copaíba e tantos outros produtos da natureza. Os acordos unilaterais feitos junto a empresas podem afetar o modo de vida e a harmonia do coletivo, segundo o MPF.
Na petição, o MPF pede a condenação do governo do estado do Amazonas ao pagamento de danos morais coletivos no valor de R$ 5 milhões, além de multa diária no caso de descumprimento da suspensão, a serem revertidos em estratégias de empoderamento e autonomia.
O governo do Amazonas terceirizou a cinco empresas a geração de créditos de carbono em 12,4 milhões de hectares de floresta. Essas áreas, que estão em reservas e parques cuja preservação é de responsabilidade do próprio estado, equivalem a metade do estado de São Paulo.
A escolha dos empreendimentos privados foi feita antes de qualquer consulta livre a comunidades tradicionais nesses territórios —iniciativas de consulta foram atribuídas às empresas, o que deve ocorrer após aprovação dos projetos, segundo o edital do governo amazonense. O documento não deixa claro se haverá repartição de benefícios e recursos entre as comunidades impactadas.
O governo do Amazonas informou que existem 483 comunidades, com 8.050 famílias, nas áreas concedidas a empresas especializadas em geração de créditos de carbono e na venda desses créditos no mercado voluntário, formado principalmente por companhias interessadas em compensar suas emissões de gases de efeito estufa.
As empresas selecionadas poderão ficar com 15% dos valores, a título de “custos indiretos administrativos”.
A Apiam (Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas) repudiou, em nota, a terceirização geração de créditos de carbono em 21 unidades de conservação, incluindo a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá, que se sobrepõe a quatro terras indígenas: Acapuri de Cima, Uati-Paraná, Jaquiri e Porto Praia.
“A sobreposição de áreas da RDS Mamirauá sobre terras indígenas gera conflitos de gestão e uso, desrespeitando os direitos dos povos indígenas às suas terras e modos de vida tradicionais. A abertura do edital sem informar a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) evidencia a falta de transparência e governança no processo”, diz a entidade.
“A ausência de comunicação adequada compromete a legitimidade das ações e fere a confiança dos povos e comunidades envolvidas”, completa.
Projeto de lei
Nesta terça (19), a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que cria o mercado de carbono no Brasil, permitindo à União estabelecer limites de emissão de gases de efeito estufa. O texto, que segue para sanção presidencial, visa obrigar empresas a pagar por poluir acima de certos níveis, incentivando práticas sustentáveis.
Após a sanção, o projeto precisa da regulamentação do Executivo, com previsão de funcionamento pleno em 2030 e impacto positivo no PIB (Produto Interno Bruto) até 2050.
O mercado, chamado de Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), deve se aplicar a atividades que emitem acima de 10 mil tCO2e (toneladas de dióxido de carbono equivalente) anualmente, com a União definindo tetos de emissão. O governo projeta cortes de 100 milhões de toneladas de CO2 em 2040, aumentando para 130 milhões em 2050.