Defensores da redução da jornada de trabalho têm recorrido a exemplos de outros países para justificar a iniciativa. O tema é alvo de discussão devido a uma proposta de emenda à Constituição (PEC) elaborada pela deputada Erika Hilton (Psol-SP), que propõe a adoção da jornada 4×3 (quatro dias de trabalho e três de descanso) em subtituição à 6×1.
O vice-presidente Geraldo Alckmin chegou a dizer que a redução das horas trabalhadas é uma “tendência mundial”. A própria autora citou o movimento internacional ao comemorar a repercussão da proposta nas redes sociais e no Congresso.
“As pessoas entenderam a importância de que o Brasil, assim como outros países do mundo já fizeram, possa avançar num texto bom para a questão trabalhista no nosso país”, disse a deputada a jornalistas.
No texto da PEC, ela fez referência a experiências internacionais: “É possível observar menor número de faltas dos empregados e produtividade em alta, em razão da adoção de estratégias de organizações funcionais para o modelo da empresa”.
A justificativa se baseia nas conclusões de projeto-piloto promovido pela entidade global 4 Day Week em 22 empresas brasileiras no ano passado. Criada em 2019 na Nova Zelândia a partir de um projeto da empresa Perpetual Guardian, a 4 Day Week propõe reduzir em 20% o tempo trabalhado, mantendo o salário e a produtividade.
O modelo foi testado também nos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Alemanha, Suécia, Holanda, África do Sul, Índia, Chile, Itália, Noruega, Bélgica e Suíça.
Também existem por todo o mundo outras iniciativas localizadas de empresas e serviços públicos, com participação de administrações locais, sempre fruto de negociação coletiva entre os trabalhadores e patrões, por meio de sindicatos.
Para Antonio Vasconcellos Jr., doutorando em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidad Católica Argentina, que estudou os experimentos, o grande mérito da iniciativa é dar condições de patrões e empregados negociarem a redução de jornada de acordo com as especificidades das empresas, a produtividade dos trabalhadores e as peculiaridades de cada país.
“Temos cases estruturados, como na Islândia, Portugal e Japão”, diz. As experiências são de pequena proporção. “Servem, porém, para prever possíveis impactos na rentabilidade das empresas e da economia dos países. Uma alteração deste tipo não pode partir de uma imposição do governo ou da legislação”, diz, em referência à PEC.
O acadêmico lembra que a reforma trabalhista de 2017, no governo Michel Temer (MDB), já flexibilizou a jornada de trabalho, permitindo o formato 5×2 dias ou 12×36 horas, adotado por empresas de segurança ou trabalhadores da saúde. “Os acordos podem ser feitos aqui também por meio de convenções coletivas de trabalho. Quanto menor a intervenção do governo nesse tipo de cenário, melhor”, diz.
Exemplos bem-sucedidos no mundo
O exemplo mais consolidado, segundo Vasconcellos, é o da Islândia, ilha ao norte da Europa com apenas 382 mil habitantes e um Produto Interno Bruto (PIB) per capita de US$ 68 mil – seis vezes o brasileiro.
Entre 2015 e 2019, numa iniciativa combinada entre governo, empresas e sindicatos, o país realizou um teste que reduziu a semana de trabalho para 35-36 horas, sem diminuição de salário. Foram envolvidos 2,5 mil trabalhadores entre funcionários públicos e privados.
Ao fim do projeto, trabalhadores e empresas haviam conseguido compensar a produtividade e a rentabilidade. Em 2020, sindicatos expandiram as negociações com empresas e, em 2022, mais da metade da força de trabalho islandesa usufruía de semanas de quatro dias de trabalho.
Outro destaque é a experiência do Japão, aponta o advogado, onde empresas como a Microsoft ofereceram um fim de semana mais longo por mês a seus funcionários. A mudança aumentou a produtividade em 40% e reduziu custos, informou a empresa.
O experimento influenciou a opinião pública e inspirou o governo a dar mais atenção ao tema no país, que tem jornada notoriamente intensa, refletindo uma cultura que valoriza a dedicação e o esforço.
A lei do Japão também prevê padrão de 40 horas semanais, geralmente distribuídas em cinco dias de trabalho. No entanto, é comum que os trabalhadores façam horas extras, muitas vezes não remuneradas, devido à cultura de “presenteeism” (presença constante no trabalho) que prevalece nas empresas.
Experiência em países da Europa
Na maior parte dos países da Europa, a legislação estabelece jornada de trabalho de 40 horas semanais. Entre as exceções estão a França, onde a jornada é de 35 horas, e a Bélgica, de 38 horas.
Na França, a mudança foi abrupta, ainda em 1998. O governo reduziu as horas semanais de 39 para 35 horas. Mas não alterou o número de dias, que continua sendo de cinco por semana na maioria dos casos. Para sobreviver, as empresas francesas passaram a conceder aumentos salariais abaixo da inflação. Aos poucos, a produtividade aumentou, compensando a redução da jornada.
Hoje, mais de duas décadas depois, dados do governo francês sinalizam que a jornada está aumentando acima do que prevê a lei, devido a pressões empresariais por mais horas extras e pela necessidade dos franceses de aumentar seus rendimentos.
Na Bélgica, após um teste-piloto da jornada 4×3, o país não reduziu, mas flexibilizou a jornada de trabalho. Desde fevereiro de 2022, o trabalhador pode optar por cumprir a mesma quantidade de horas em 4 dias, em vez de 5. Também pode, se preferir, trabalhar 45 horas em uma semana e deduzir as restantes da seguinte.
No Reino Unido, um projeto iniciado em junho do ano passado pela 4 Day Week UK envolveu mais de 3,3 mil funcionários e 61 empresas. Entre as companhias, 56 prorrogaram a medida. Um projeto do governo escocês com o pagamento de subsídios está em teste.
Em Portugal, o projeto-piloto da “Semana de Quatro Dias” organizado pelo governo em 2023 contou com a participação de 41 empresas voluntárias. Ao fim do período de teste, apenas quatro empresas quiseram retornar ao sistema antigo.
O coordenador do projeto, o economista português Pedro Gomes, afirma em seu livro Sexta-feira é o novo sábado, de 2021, que o trabalho não acompanhou as transformações profundas do mundo ao longo das últimas décadas. Para ele, a semana de quatro dias vai “salvar o capitalismo”.
“É um erro dos críticos da semana de quatro dias pensarem que o tempo livre é um tempo morto para a economia. Para eles, se não trabalharmos, não contribuímos para a economia. Podemos estar felizes, mas a economia vai cair”, disse à BBC News.
“A verdade é que há muito valor econômico no tempo de lazer. É no tempo livre que vamos ao restaurante, ao teatro, que viajamos. As indústrias de lazer dependem do tempo livre das pessoas. Pessoas sem tempo livre não são boas consumidoras.”
Sistema americano é mais flexível
Paulo Renato Fernandes da Silva, especialista em Relações de Trabalho pela Universidade de Coimbra (Portugal) e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-Rio), considera que as experiências na Europa refletem um modelo onde o Estado é mais propenso a regular as relações de trabalho.
“Em termos mundiais, nós temos basicamente dois parâmetros: o modelo americano e o europeu. No modelo americano, você tem mais liberdade contratual, não tem tantas amarras ou limitações como nós temos no modelo romano-germânico”, explica.
No Brasil, segundo ele, nossa tradição também é engessada. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), promulgada em 1943 durante o governo de Getúlio Vargas, tem entre suas influências a Carta del Lavoro, publicada na Itália em 1927 pelo regime fascista de Benito Mussolini.
“Nos países europeus, você já tem mais a incidência do Estado mais presente na relação, de forma que considero elevada”, afirma. “Nós continuamos nessa toada com a Constituição de 1988, em que a jornada foi reduzida de 48 para 44 horas semanais”, afirma.
Na avaliação do professor, não há sentido em limitar a jornada de trabalho por meio de emenda constitucional, sobretudo neste momento em que o país precisa se desenvolver. “Temos sindicatos fortes que podem promover as negociações”, afirma. “O legislador brasileiro costuma se arrogar a pretensão de achar como as pessoas devem viver e parte para esse tipo de regulação.”
Nos Estados Unidos, a legislação também estabelece a jornada de 40 horas semanais, mas empresas do país também testaram a semana de quatro dias no Missouri, Texas e Massachusetts. Além disso, o Departamento de Polícia de Golden, no Colorado, e outras organizações públicas no país implementaram pilotos. Mas são iniciativas limitadas e a aceitação é diversificada dependendo do estado.
Segundo Fernandes, nos EUA existe uma cultura consolidada de negociação e liberdade “intrínseca” que favorece a flexibilidade. “As negociações são por hora de trabalho, há um mínimo nacional, mas os acordos são sempre feitos acima do piso, porque com a economia forte, o próprio mercado precifica o valor do trabalho”, diz. “O mínimo acaba sendo recebido só por imigrantes, muitas vezes ilegais.”
A mesma liberdade é registrada no Canadá, onde a legislação trabalhista é descentralizada, variando de acordo com cada província ou território. Mas a jornada de trabalho, de 40 horas, vale para todo o país. O conceito de semana de 4 dias tem crescido, especialmente no setor privado, mas há experiências também no setor público.
Uma funcionária pública brasileira residente em Vancouver Island, província de British Columbia, contou à Gazeta do Povo as facilidades de negociação de jornada de trabalho. Ela faz a jornada 4×3 e pode escolher o dia de folga – segunda ou sexta-feira. As jornadas são das 8h às 17h, com 30 minutos de intervalo remunerados. “Aqui eles valorizam muito o work-life balance (equilíbrio entre vida e trabalho)”, diz.
Segundo ela, a cultura de negociação também é disseminada. As empresas oferecem pacotes de benefícios, empenhadas em manter a mão de obra qualificada.
O Canadá enfrenta uma escassez significativa de trabalhadores em diversos setores, desde os mais qualificados até para os serviços mais básicos. De acordo com uma pesquisa do Banco de Desenvolvimento de Negócios do Canadá (BDC), 64% das empresas canadenses afirmam que a escassez de mão de obra tem limitado seu crescimento.
“Eles dão, por exemplo, tanto na iniciativa privada quanto na pública, o mental health day (pra cuidar da saúde mental), supplemental day (dois dias no ano não trabalhados pelo motivo que quiser), e o moving day (um dia no ano de folga caso esteja fazendo mudança de casa)”, afirma. “Eu sou muito, mas muito mais feliz trabalhando aqui do que no Brasil, sem dúvida.”