Uma crítica comum à academia é que as relações com as comunidades com que ela trabalha não são horizontais. Os pesquisadores chegam por lá, desenvolvem seus estudos e vão embora, sem dar um retorno a quem participou da pesquisa in loco. Logo cedo a zootecnista Zilda Souza se deu conta desse desequilíbrio, que ela passou a combater em sua própria trajetória. “Quando faço um trabalho na comunidade, eu aprendo. A gente faz uma troca e organiza tecnicamente as necessidades da comunidade. Mas são eles que sabem do que precisam, e são eles que têm as ferramentas”, ela diz.
Souza cresceu em Itaberaba, região da caatinga baiana, e já na graduação em zootecnia, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, começou a aplicar seus conhecimentos acadêmicos em trabalhos sociais e formativos na comunidade em que fica seu terreiro de Candomblé, no município de Cruz das Almas.
Na época, a região buscava o reconhecimento enquanto comunidade quilombola, e a cientista, mesmo sem saber muito sobre o processo, foi atrás de disciplinas que pudessem ajudá-la com estratégias para a demarcação do território. Munida de um GPS, foi aprendendo na prática, definindo os limites junto com a comunidade. Seus mapas foram fundamentais na delimitação do Quilombo da Baixa da Linha e em sua certificação como remanescente de quilombo, emitida pela Fundação Cultural Palmares em 2010.
Ainda pensando na realidade e nas necessidades do grupo, a cientista começou a pesquisar sobre produção de aves. Seu trabalho de conclusão de curso focou no balanço eletrolítico de rações: o intuito era descobrir como alimentar os frangos com uma ração saudável e equilibrada de modo a tornar a produção mais acessível para a alimentação e o uso da comunidade -por exemplo, nos ritos religiosos.
Na época, ela levava para casa as sobras da ração que balanceava -fazia uma mistura de ingredientes que atendia às necessidades nutricionais de forma adequada- na universidade e compartilhava com os produtores da região. Quando cursou o mestrado em ciência animal pela mesma universidade, seguiu pesquisando o frango de corte, isto é, destinado à alimentação e não à produção de ovos, e balanço eletrolítico com o objetivo de ajudar sua comunidade.
Daí ela não parou mais: estudou a alimentação das cabras -animais muito presentes no sertão-; como criá-las com qualidade e a preços acessíveis. Participou da criação do Centro Comunitário Luiz Orlando em Cachoeira –também no Recôncavo Baiano–, que promove o cinema e o rap na comunidade. Na pandemia, preocupada com a segurança alimentar, desenvolveu com o grupo o Comitê de Solidariedade Popular de Combate ao Covid-19, que implementou hortas comunitárias, evocando sua vivência de filha de agricultores. Tocou, ainda, um trabalho sobre ancestralidade com crianças negras de religiões de matriz africana que acabou virando o livro Crianças de Axé, produzido por e para elas, com o objetivo de salvaguardar a memória coletiva.
Hoje Souza colabora com o projeto Mukengi, do Instituto Mancala, na Bahia, que busca capacitar pesquisadores negros e indígenas a fazer pesquisas em C&T voltadas a suas comunidades. Pelo Mancala, atua como executora do projeto “Tecnologias sociais como instrumento de disseminação do conhecimento científico em saúde”.
O projeto é desenvolvido em parceria com a UFBA em Ilha de Maré, Lauro de Freitas e Pojuca –um quilombo, uma comunidade periférica e outra na zona rural, respectivamente– e leva tecnologias da universidade para esses espaços: por exemplo, cria hortas com os alunos e professores, fortalecendo os vínculos e reforçando a relação com a terra e a ideia de autonomia na produção do próprio alimento.
Zilda Souza -ela própria egressa da primeira edição do Mukengi- frisa: “Só trabalhei com aquilo que estava presente em minha vida. Se não fosse para mim, era para as pessoas ao redor”.
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Ana Gualda é comunicadora e colaboradora do Instituto Serrapilheira.
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