O sistema de cotas permitiu a entrada de um número expressivo de estudantes negros e indígenas nas universidades. A USP (de São Paulo), a maior e mais importante instituição de ensino superior do país, foi a última a aderir à reserva de vagas para negros e indígenas. Sua adesão, completada em 2018, ocorreu 13 anos depois de ter-se iniciado na Ufba (Universidade Federal da Bahia). Mesmo assim, mediante um programa de bonificação próprio, a USP quadruplicou, em dez anos, no período 2010-2020, seu número de estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI).
Essa abertura de portas se generalizou nas universidades federais com a chamada Lei das Cotas. Mas é possível e necessário avançar, porque não basta que negros e indígenas tenham seu acesso facilitado, é preciso também que se sintam suficientemente acolhidos e integrados no ambiente acadêmico.
Esse foi o foco do projeto “Limites e possibilidades para o bem-viver de estudantes negros em instituições de ensino superior“, conduzido por Alessandro de Oliveira dos Santos, professor do Instituto de Psicologia da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa Psicologia e Relações Étnico-Raciais.
“Entre outros subtemas, o projeto investigou o bem-estar subjetivo [BES] de alunas e alunos negros, as situações de preconceito e discriminação no ambiente acadêmico, as formas de organização dos estudantes dentro da universidade e o suporte social oferecido pela família”, explica Santos.
O estudo mostrou que o índice de bem-estar subjetivo dos estudantes negros é menor do que o dos estudantes não negros, que suas condições de vida e estudo foram mais afetadas pela pandemia da Covid-19, que eles enfrentam dificuldades maiores de adaptação acadêmica e para conclusão do curso universitário. E que, dentre os estudantes da USP, são os que mais utilizam os auxílios para permanência estudantil e os serviços de saúde mental. “As situações de preconceito e discriminação que vivenciam na universidade produzem efeitos negativos na saúde mental e na qualidade de vida acadêmica desses estudantes”, sublinha Santos.
O conceito de bem-estar subjetivo, central na pesquisa, ganhou lastro científico no âmbito da psicologia ao longo das últimas quatro décadas. A compreensão mais corroborada na literatura explica o BES como uma atitude, composta por dois aspectos principais: afetivo e cognitivo. O aspecto afetivo se refere às emoções, expressas em termos de afetos positivos e afetos negativos. O aspecto cognitivo, ou seja, o componente racional e intelectual, refere-se a quão satisfeita a pessoa está com a própria vida.
O projeto se desenvolveu em quatro etapas. A primeira consistiu no levantamento bibliográfico de artigos, dissertações, teses e livros sobre relações étnico-raciais, programas de ação afirmativa, políticas de permanência estudantil, bem-viver e BES. A segunda teve estudo transversal e aplicação em dois momentos da Escala de Bem-Estar Subjetivo em estudantes negros, brancos, amarelos e indígenas.
Na terceira etapa, foram realizadas entrevistas individuais com estudantes negros identificados na segunda etapa. Por fim, a quarta etapa envolveu a realização de grupos focais, para investigar as concepções de bem-viver desse grupo e saber como ele lidava com as situações de preconceito e discriminação no ambiente acadêmico e qual era o suporte dado pelas famílias para garantir o bem-estar e a continuidade dos estudos.
O pesquisador afirma que os resultados permitiram compreender dimensões pessoais, contextuais e institucionais que envolvem a saúde mental e a qualidade de vida acadêmica dos estudantes negros da USP. E que a compreensão dessas dimensões é um tema estratégico para a gestão e a governança universitárias, no que se refere à proposição e condução de políticas de permanência capazes de minimizar comportamentos que conduzam ao abandono dos estudos e fracasso acadêmico.
“Apesar disso, nenhum dos critérios adotados atualmente para medir o grau de excelência de instituições de ensino superior, referendados por rankings nacionais e internacionais de educação, inclui aspectos humanos fundamentais da vida acadêmica, como, por exemplo, se a cultura, as relações e o ambiente de ensino e pesquisa são inclusivos e saudáveis”, comenta.
“Por meio do projeto, foi possível produzir dados e informações que apontam para a importância do debate acerca da saúde mental, da qualidade de vida acadêmica e do suporte social aos estudantes oferecido no contexto universitário”, afirma Santos.
No que se refere aos limites para o bem-viver dos estudantes negros na USP, o pesquisador aponta que a desigualdade étnico-racial e as situações de preconceito e discriminação na universidade tornam a experiência e adaptação acadêmica mais difíceis.
“Por outro lado, no que se refere às possibilidades para o bem-viver, identificamos a importância do suporte social oferecido pela família, pelos coletivos estudantis e pelos programas de permanência e serviços de saúde mental da universidade”, acrescenta Santos.
Concluído o projeto em meados deste ano, o pesquisador segue agora com o estudo “Saúde mental, marcadores sociais da diferença e sucesso acadêmico: investigação dos efeitos da pandemia do Covid-19 sobre estudantes universitários“.
Recomendações para um ambiente acadêmico mais inclusivo e saudável
- enfrentamento das situações de preconceito e discriminação no ambiente acadêmico
- incentivo aos professores para maior engajamento e proposição de atividades para integração e apoio acadêmico aos estudantes negros
- apoio aos coletivos estudantis, criando inclusive formas de financiamento capazes de consolidá-los e ampliar suas atividades
- aproximação com as famílias
- incremento financeiro dos auxílios de permanência estudantil