Em Caetés, Pernambuco, Alzira Maria da Conceição, 81, sai da cama todos os dias às 3h da madrugada para varrer o quintal e adiantar a torra do café. A filha, Maria Alzira da Conceição, 59, levanta junto.
De um armarinho ela tira uma sacola com medicamentos contra pressão alta e calmantes. Todos os dias elas tomam os comprimidos enquanto escutam o ruído de uma turbina eólica. “Bum, bum, bum”, diz Maria.
Mãe e filha apresentam sintomas da chamada síndrome da turbina eólica (STE), que médicos e pesquisadores atribuem ao ruído provocado por esses equipamentos. A condição tem sido associada a prejuízos à saúde mental ao provocar dores de cabeça, dificuldade de concentração, insônia, depressão, ansiedade e irritação.
Um estudo sobre a síndrome é conduzido pela UPE (Universidade de Pernambuco) e pela Fiocruz. Em outubro, os pesquisadores constataram que 9 entre 10 famílias entrevistadas em um só dia relatavam problemas de saúde mental. Na primeira etapa da pesquisa, em 2023, 70% dos 105 moradores entrevistados disseram querer deixar a terra onde vivem há gerações por causa da presença das turbinas eólicas. O estudo vai até 2026.
Na região de Maria e Alzira foram instalados 126 aerogeradores com cerca de 80 metros de altura, divididos em oito parques eólicos que produzem 182 MW e ruídos acima de 43 decibéis (dB) —o som mais alto já registrado foi de 59 decibéis, em uma noite em janeiro deste ano, segundo medições feitas pelo governo de Pernambuco. O ruído médio na cidade de São Paulo, das 7h às 19h, é de 60 decibéis.
Como se morasse em uma área urbanizada, Alzira diz que confunde o som das turbinas com o dos automóveis. Tem o hábito de verificar se uma visita estacionou em frente à casa de pau a pique ou se são os geradores de energia ao redor.
Para aliviar o estresse, diz que retomou as caminhadas pelas estradinhas, muitas delas abertas para a passagem de caminhões que traziam hélices e funcionários das usinas eólicas, ainda margeadas por mandacarus. “Eu fico é assombrada”, diz a respeito as turbinas. “É bom [caminhar] porque ‘desentreva’ um pouco.”
Os contratos para a instalação das torres foram fechados há dez anos com moradores que se mudaram para a cidade ou para comunidades próximas. Um vizinho de Alzira, por exemplo, arrendou o terreno e as torres ficam então a cerca de 250 metros de distância da casa dela.
O marido de Alzira também acorda às 3h para ir até o centro de Caetés, onde paga R$ 400 por consultas médicas desde que a depressão e a irritação começaram a torná-lo estranho e mais calado, diz a filha. “Você olha e não é mais a mesma pessoa que tá ali”, acrescenta.
Segundo ela, o SUS não fornece à família os medicamentos de que precisam, como o calmante manipulado de R$ 350, que tomam para dormir, pago com a aposentadoria rural de um salário mínimo de Alzira e o marido. “Ele tá com depressão e muito sem paciência, sem dormir.”
A dona de casa Maria Aparecida de Moraes, 52, mora ali perto e conta que, assim como os vizinhos, toma calmantes para dormir, mas também ao acordar, após orientação de uma psicóloga do SUS. “Eu saía para o médico chorando. Entrava no consultório chorando. Voltava chorando.”
Ela diz, ainda, que a casa é coberta por um pó empurrado pelas hélices, o que lhe teria provocado crises alérgicas e coceira. Afirma que, à noite, as torres parecem emular o som do choro de um bebê. “O barulho é mais alto de madrugada.” Em outros momentos, diz, o ruído lembra o de máquinas industriais. Nas madrugadas, também se incomoda com as lâmpadas de segurança coloridas instaladas no alto das torres enfileiradas. “Parece um Natal, mas triste.”
Em 2023, o Ministério Público de Pernambuco pediu que a Justiça obrigasse a empresa AES Brasil a garantir um distanciamento mínimo de 200 metros das turbinas eólicas. Segundo o inquérito civil, o ruído fere leis estaduais e ultrapassa o limite para áreas rurais estabelecido pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) em 2019 —de 40 dB durante o dia, e 35 dB à noite.
À Promotoria a AES Brasil confirmou a situação. Segundo a CPRH (Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco), em junho a empresa indenizou os moradores a até 200 metros de proximidade —o que não inclui Alzira, Maria ou Aparecida. Àqueles a uma distância de 400 metros, propôs isolamento acústico, mas o CPRH concluiu que “os barulhos ainda são perceptíveis mesmo com as reformas”.
A agência deu 120 dias para a AES Brasil apresentar um plano para mitigar os problemas relatados e recomendou que as indenizações também fossem estendidas às famílias com até mil metros de proximidade das turbinas. O prazo se encerra neste mês.
As indenizações e as possíveis futuras remoções acrescentam uma camada extra aos problemas.
“Esse processo é chamado de desterritorialização”, afirma Wanessa Gomes, uma das autores do estudo. Doutora em saúde pública e professora da UPE, ela afirma que a desfiguração dos espaços intensifica os sintomas atribuídos à síndrome.
Alexandre da Silva, 34, conta que toma ansiolíticos. Os amigos estão se mudando. Quando vai para a cama com a esposa, diz ser acordado pelas hélices. Ele, que há dez anos trabalhou na instalação das torres. “A gente perdeu a cultura, o sossego, perdeu a amizade”, diz. Mas ao contrário de muitos, ele diz querer ficar. “Você constrói uma casa tijolinho a tijolinho. Aí, acabou? É um sonho isso aqui.”
A casa da líder comunitária Roselma ficava a cerca de 100 metros de uma turbina eólica. Sem conseguir dormir, aceitou uma proposta e vendeu o imóvel por R$ 30 mil para alugar uma casa em uma comunidade próxima, porém mais distante das turbinas.
AES Brasil diz seguir altos padrões de segurança
Em nota, a AES Brasil afirma que assumiu o Complexo Eólico Caetés em novembro de 2022 e que mantém escuta e atividades de monitoramento de ruído e da fauna, bem como gestão de resíduos e ações de educação ambiental para as comunidades.
“A AES Brasil esclarece que atua em conformidade com os mais altos padrões de segurança nas inspeções e manutenções preventivas de seus aerogeradores e reforça que continua à disposição por meio de seus canais institucionais”, diz.
Em 2014, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) investiu R$ 846,8 milhões no Complexo de Caetés. O banco afirma que as regras de distanciamento mudaram desde então e que só aprova projetos a partir de uma tabela de risco socioambiental. “Em relação ao caso mencionado, o BNDES vai analisar o estudo para avaliar se há medidas a serem tomadas e que estejam ao alcance da instituição para mitigar o impacto que está sendo identificado.”
A presidente da Abeeólica (Associação Brasileira de Energia Eólica), Elbia Gannoum, lembra que o Complexo de Caetés foi um dos primeiros empreendimentos eólicos do país e também cita mudanças nas regras —agora, as torres devem estar a pelo menos 300 metros de distância das residências. Afirma, ainda, que as empresas discutem alternativas para mitigar as queixas com 198 famílias da região de Caetés.
Diz, no entanto, não ter conhecimento de que a proximidade das torres cause danos à saúde mental. “Nós não conhecemos, inclusive na literatura internacional, estudos demonstrando que essas situações, mesmo de um parque próximo a uma residência, causem doenças.”
Até outubro, o Brasil tinha 1.079 parques eólicos, com capacidade para gerar 32 GW de energia a partir de 11.480 geradores. Alguns deles ficam a cerca de 270 metros do jardim cuidado pelo líder sindical Simão Salgado da Silva, 75, que recebia estudantes de todo o país para ensiná-los técnicas de agricultura sustentável aprendidas na Caatinga.
A esposa dele, dona Edite Maria da Silva, 75, avisou a Simão que alugaria um apartamento no centro para ficar longe das turbinas. “Achei uma coisa linda e de outro mundo para nós aqui. Depois elas começaram a zoar e a minha cabeça acompanhou aquela zoada.”
O marido entrou em contato com a empresa, que ofereceu uma reforma acústica. Mas Edite não gostou do arranjo. “Aí eu vou ter que me trancar dentro de casa e jogar a chave fora?”, questionou.
Simão não queria abandonar o jardim, nem deixar a esposa deprimida, a quem começou a namorar ainda na adolescência. Cedeu e alugou um apartamento na cidade.
O filho do casal, José Salgado, 45, decidiu ficar. Ele mora ao lado da antiga casa da família. “Antes, você ouvia a chuva vindo de longe. Você ouvia o bacurau de longe, mas nunca mais ouvi o bichinho cantar. Parece um avião que nunca passa.”