Os dentes de um adolescente que morreu há quase 2 milhões de anos estão revelando pistas importantes sobre como os ancestrais dos seres humanos mudaram seu padrão de crescimento, passando a ter uma infância bem mais comprida e segura que a dos demais primatas.
Análises detalhadas dos fósseis do jovem, feitas por meio de microtomografias, indicam que seus dentes se formavam num ritmo intermediário entre o das crianças modernas, muito lento e gradual, e o de chimpanzés e outros grandes símios, que já ganham boa parte de sua dentição definitiva nos primeiros anos de vida. Os detalhes do processo podem não parecer muito significativos, mas eles trazem uma série de possíveis implicações para a compreensão do desenvolvimento cognitivo e social dos ancestrais da humanidade.
Originário da atual Geórgia, perto da fronteira com a Armênia, o indivíduo era um membro muito arcaico do gênero Homo, o mesmo ao qual pertencem os seres humanos modernos —a espécie exata na qual ele se classifica ainda é objeto de debate.
Tudo indica que o adolescente e os demais indivíduos achados perto da cidade georgiana de Dmanisi estão entre os primeiros hominínios (membro do grupo de primatas mais próximo do Homo sapiens) a deixar a África e se espalhar por outras regiões do planeta. Os fósseis têm 1,8 milhão de anos, idade um pouco superior à de outros Homo primitivos encontrados na Indonésia.
No novo estudo, publicado na quarta-feira (13) na revista científica Nature, a equipe de Christoph Zollikofer e Marcia Ponce de León, da Universidade de Zurique, reconstruiu todo o desenvolvimento dentário de um hominínio sabidamente “subadulto” cujo crânio é designado pela sigla D2700.
Um dos indícios de que não se trata de um adulto é justamente o fato de que seus terceiros molares (também conhecidos como dentes do siso) não estão totalmente formados —as raízes dos dentes já tinham se desenvolvido bastante, mas ainda não tinham terminado de crescer.
Com a ajuda de uma das formas mais sofisticadas de tomografia disponíveis para a ciência, conduzida num acelerador de partículas em Grenoble, na França, Zollikofer, Ponce de León e seus colegas conseguiram enxergar as camadas de formação do dente ao longo da vida do adolescente.
O que acontece é que, num ritmo diário, os dentes que estão crescendo recebem novas camadas de dentina (mais funda) e esmalte (mais superficial), até adquirir seu formato “pronto”. Isso corresponde a linhas de crescimento que a microtomografia é capaz de divisar. E, a partir disso, os pesquisadores estimam qual teria sido o ritmo de formação dos dentes, o que corresponde, indiretamente, à idade do indivíduo.
Resultado da análise: o “subadulto” teria morrido com pouco mais de 11 anos de idade (a margem de erro é de seis meses para mais ou para menos). Ainda faltava cerca de um ano e meio para ele alcançar a maturidade dentária “completa”. Ou seja, em termos humanos modernos, ele seria mais ou menos equivalente a alguém nos anos finais da adolescência, já que a nossa maturidade dentária costuma chegar entre os 18 anos e os 22 anos.
Além disso, o ritmo geral do desenvolvimento dos dentes se revelou bastante significativo. Os chimpanzés, nossos parentes vivos mais próximos, têm um pico de formação dos dentes muito cedo, com dois anos de vida. Nos humanos modernos, o pico vem apenas aos sete anos de idade, depois de começar muito devagar e de perder velocidade depois. Já o padrão do jovem georgiano também começa lento, só que alcança um pico antes, aos cinco anos, e também termina antes, num momento não muito diferente do visto entre os chimpanzés.
Os impactos de tudo isso ainda não estão claros. Algo que certamente vale no caso do Homo sapiens é o fato de que o desenvolvimento infantil, nos primeiros anos de vida, é muito mais lento em vários aspectos porque há uma priorização do desenvolvimento cerebral —o cérebro das crianças é muito imaturo no começo e cresce um bocado nessa primeira fase. A dentição de desenvolvimento mais lento seria um aspecto dessas tendências mais tardias, o que inclui longos anos de infância e adolescência.
A questão, porém, é que os indivíduos da Geórgia ainda tinham cérebros de tamanho modesto, embora já maiores que os dos grandes símios de hoje. Ou seja, o grande crescimento cerebral na primeira infância não explicaria o que acontecia com eles.
A equipe de Zurique propõe, porém, que um elemento importante poderia ter sido o uso, já corrente naquela época, de ferramentas de pedra para processar a comida antes da ingestão. Isso permitiria que as crianças mais novas não precisassem lidar com alimentos tão abrasivos e difíceis de mastigar. Segundo esse modelo, as mudanças na dentição poderiam ter vindo antes das mudanças cerebrais, e o maior cuidado dos pais para com os filhos, preparando os alimentos, estaria incluído no pacote.
Debbie Guatelli-Steinberg, especialista em evolução humana da Universidade do Estado de Ohio (EUA) que comentou o estudo a pedido da Nature, diz que pode ser prematuro, porém, tirar conclusões com base no adolescente de Dmanisi. É preciso considerar, por exemplo, que os pesquisadores ainda não contam com dados sobre vários indivíduos da mesma espécie para ter uma ideia da variabilidade do desenvolvimento. Infelizmente, esse problema é comum em estudos com hominínios, cujos fósseis costumam ser raros.
“Esse é um dos desafios clássicos da paleoantropologia: como podemos aproveitar ao máximo as parcas evidências que existem, as quais, em geral, correspondem a fósseis isolados?”, disse Zollikofer à Folha.
Embora a mesma técnica pudesse ser aplicada aos adultos de Dmanisi, ela teria duas limitações. “Primeiro, não teríamos como determinar a idade exata do indivíduo na hora de morte. Em segundo lugar, as coroas dentárias [a parte superior dos dentes] de hominínios adultos normalmente mostram um desgaste substancial, de modo que a informação sobre as fases iniciais do desenvolvimento dos dentes acaba se perdendo.”