Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do século passado, recordam-se de que três, quatro vezes por ano, os pneus furavam. Era um fato corriqueiro na vida familiar. Lembro do meu pai na estrada. Parava de falar. Ficava introspectivo. “Acho que tá puxando pra direita”. Era a deixa para a família se calar, num respeito de reza antes da refeição. Ele tirava de leve as mãos do volante e com ares de médico auscultando o pulmão do paciente —os olhos pro alto, para que a visão não atrapalhasse o sensibilíssimo sismógrafo de suas nádegas— sentia se de fato um pneu murcho arrastava o carro para algum lado. Parávamos no acostamento. Ele descia, olhava e orgulhoso de sua precisão nadegal, decretava: “Furou. É o da frente. Da direita.”
Sabemos bem, já entrados na terceira década do século 21, que o legado do patriarcado não é exatamente glorioso. A Lei Maria da Penha, o Trump, o Bolsonaro e a estátua do Borga Gato estão aí para nos lembrar disso, mas trocar um pneu era uma bela ação da masculinidade, cuja única toxicidade vinha dos escapamentos dos carros na estrada.
Era no que eu pensava enquanto carregava o estepe pela calçada. Não sei jogar futebol. Não luto jiu-jítsu. Entre o Adam Driver e o Danny DeVito, a leitora que, como o motorista dos anos 80, fechar os olhos e auscultar as vibrações austrais de seu corpo, concordará que “puxo” mais para o segundo. No entanto, ali estava eu, carregando a roda de um carro, 30 kg de aço e borracha. Por um segundo, sonhei em ser famoso e ter a presença de um paparazzo para escrever uma nota, no dia seguinte, tipo “Caetano estaciona carro no Leblon”: “Antonio troca pneu nos Jardins”.
Há muitos homens que, diante de suas frágeis masculinidades, precisam segurar uma arma. Eu, após décadas de análise, preciso apenas de uma chave de boca. Vocês tinham que ver quando a engatei nos parafusos e, com o pé esquerdo —o mesmo que usaria para chutar uma bola, caso soubesse chutar uma— dei o primeiro tranco pra baixo. Olhei em volta na vã esperança não de um paparazzo, o que seria delírio, mas ao menos de um pedestre como testemunha: não passava ninguém.
A ausência de público se tornou uma vantagem assim que me dei conta da razão pela qual trocar um pneu é ao mesmo tempo um ato viril e patético: o cofrinho. Se o cofrinho fosse um personagem numa animação da Pixar, seu momento de glória seria a troca de pneu. Neste “Divertidamente” da anatomia, a troca de pneu seria a Sapucaí do cofrinho. Como sou eu que mando no cofrinho, não ele em mim, resolvi sentar na sarjeta. E sentar na sarjeta, sujando a calça no chorume da cidade, já com as mãos imundas pelo traslado do estepe, fez com que eu me sentisse um Clint Eastwood, um Maguila.
Uma vez afrouxados os parafusos, veio a melhor parte: o macaco. Botei o troço embaixo do carro e com gestos decididos e extremamente másculos, fui girando a manivela. Girando, girando, girando. Até me dar conta de que o carro não levantava, mas a lataria, sim. Uns 15 centímetros, amassada: a porta dianteira não abria mais.
Liguei pro seguro. Clint Eastwood (ou Maguila?) trocou o pneu em dois minutos e quando perguntou sobre o amassado, eu disse, “o carro caiu num buraco enorme ali na Rebouças. Furou o pneu e amassou a lataria. Eu ia botar o estepe, mas tô lesionado do jiu-jítsu”. Dei R$ 100 de gorjeta para que não contasse nada aos paparazzi do meu delírio. Chegando em casa, comprei uma AK-47.
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