Democracia e constitucionalismo são conceitos políticos distintos. À democracia importa que o poder seja exercido pela maioria dos cidadãos. Já ao constitucionalismo, preocupa que o poder seja exercido dentro de certos limites, mesmo que esse poder decorra da vontade da maioria. Há, portanto, uma tensão permanente entre democracia e constitucionalismo.
Nos regimes democráticos os governos são escolhidos por meio do voto. Os postulantes que receberem mais votos, devem assumir o poder. Os que perderem, vão para a oposição. A sobrevivência do regime depende do compromisso de vencedores e derrotados de se submeterem às regras do jogo. O que não é tarefa fácil, dados os incentivos a abusar do poder por parte de quem está no governo e de subverter a ordem por quem está fora dele. Como pontua o cientista político Adam Przeworski, “o milagre da democracia é que forças políticas conflitantes obedeçam aos resultados das votações”.
Muitos fatores como a prosperidade econômica, a igualdade ou a identidade cultural podem contribuir para que esse milagre se realize. A existência de uma constituição rígida, que assegure direitos e estabeleça um sistema de freios e contrapesos, também pode ampliar a confiança de que as regras do jogo serão respeitadas por vencedores e vencidos.
Nesse sentido, muitos alegam que a vitória significativa de Donald Trump nas últimas eleições, não deveria gerar preocupações. Basta que os derrotados aceitem o resultado das urnas, como propõe o ex-presidente Jair Bolsonaro, que estará tudo certo. O temor, porém, não é ilegítimo. E isso por dois motivos: o primeiro é que Trump (como Bolsonaro) não se demonstrou fiel ao resultado das urnas, quando foi derrotado no passado; em segundo lugar, porque, tendo os seus partidários assumido o controle de importantes mecanismos de freios e contrapesos, como a Câmara, o Senado, além da própria Suprema Corte, as barreiras institucionais ao exercício arbitrário do poder estabelecidas pela constituição ficaram bastante fragilizadas.
A vitória de Trump, assim como o crescimento do populismo autoritário em outras partes do mundo, pode até não representar o fim da democracia, entendida como governo da maioria, mas certamente aponta para um afastamento do eleitorado dos ideais do liberalismo político, incorporados pelas democracias constitucionais, em que o poder da maioria deve se encontrar contido pelo governo das leis e pelos direitos fundamentais, inclusive pelos direitos da minoria.
No Brasil as instituições sobreviveram às incursões do populismo autoritário. As insurreições contra os resultados das urnas foram contidas. O projeto de anistia dos que invadiram a sede dos poderes, em 8 de janeiro de 2023, assim como o triste atendado terrorista contra o Supremo, nesta semana, apontam, no entanto, que aqui também persistem setores descompromissados com uma democracia de natureza constitucional.
O desafio dos que se encontram no poder é demonstrar que são capazes de atender as principais necessidades da população. O desafio das instituições, em especial do Supremo Tribunal Federal, é demonstrar que são capazes de guardar a constituição e aplicar a lei de maneira íntegra e imparcial. Só assim estarão contribuindo para que o milagre da democracia continue se realizar por essas paragens.
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