Após a escalada de tensão entre Brasil e Venezuela, o governo brasileiro não pretende reatar a boa relação com o regime de Nicolás Maduro. Enquanto o relacionamento entre os dois países passa por um esfriamento, a dívida que Caracas tem com o Brasil segue sem previsão de ser quitada. O débito, que supera a casa de US$ 1,6 bilhão, teve os pagamentos suspensos desde 2017.
A relação entre a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ditador Nicolás Maduro ficou estremecida nos últimos meses e, conforme apurou a Gazeta do Povo com membros do Itamaraty, não há interesse, neste momento, em “reconstruir as pontes rompidas” com o país. O autocrata venezuelano escalou o tom contra o Brasil após o governo brasileiro se opor à adesão da Venezuela aos Brics.
Para analistas consultados pela reportagem, o afastamento visto entre os dois países pode deixar a questão da dívida em último plano. “O momento delicado das relações diplomáticas entre Brasil e Venezuela obviamente é um fator que pode influenciar no atraso maior ainda do pagamento que a Venezuela deve com Brasil”, avalia Guilherme Gomes, consultor de comércio internacional da BMJ Consultores Associados.
“Ainda que as tratativas dessa dívida sejam baseadas em critérios técnicos e baseados em contrato, há um elemento político [por trás dessas negociações]”, pontua Gomes. O analista avalia ainda que, um eventual rompimento dos dois países, pode culminar ainda em uma decisão de Maduro de jamais retomar os pagamento.
Quando assumiu para seu terceiro mandato, Lula tentou reatar as negociações da dívida com a Venezuela, apostando em sua aproximação com o chavismo. O petista defendia a ideia de que os pagamentos, suspensos desde 2017, não haviam sido retomados nos últimos anos porque o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) havia cortado as relações bilaterais com Maduro durante seu mandato.
“Vamos ser francos. Os países que não pagaram, seja Cuba ou Venezuela, é porque o [ex-]presidente [Bolsonaro] resolveu cortar relação internacional com esses países e para não cobrar e poder ficar nos acusando, deixou de cobrar e tenho certeza que no nosso governo esses países vão pagar, porque são todos amigos do Brasil e, certamente, pagarão a dívida que têm com o BNDES”, disse Lula em fevereiro de 2023. Mas nem mesmo sua aproximação de Maduro destravou os pagamento.
Lula errou ao apostar em aproximação com Maduro para quitar dívida
Quando assumiu o Planalto para seu terceiro mandato, o petista reestabeleceu o relacionamento diplomático com o país e apostou na reaproximação com Maduro. Lula chegou a receber o ditador venezuelano em Brasília e tratar sobre o débito bilionário. O Ministério da Fazenda, junto com alas do regime chavista, propuseram negociar o montante e retomar os pagamento, mas as negociações nunca avançaram.
Na avaliação do analista de relações internacionais Cezar Roedel, essa foi uma aposta equivocada de Lula. “Creio que mesmo com a relação anterior, a dívida bilionária da Venezuela com o Brasil estaria apenas no campo da narrativa de Maduro, sem qualquer atitude resolutiva em pagá-la”, analisa.
Roedel pontua que o país se tornou uma “marionete” sino-russa na América do Sul desde que virou alvo de grandes investimento da China e Rússia em diversos setores, inclusive militares. Com essa aproximação de Pequim e Moscou, Brasil perdeu relevância no tabuleiro político para Maduro.
“Maduro demonstra apenas a sua birra de um ditador deprimente e sem qualquer expressão, até mesmo para as autocracias dos Brics. Se Maduro ainda tivesse alguma coisa a apresentar, Rússia e China não teriam permitido que o Brasil vetasse a entrada da Venezuela. De toda a forma, a questão da dívida já estava comprometida quando havia uma relação diplomática mais amistosa”, pontua o especialista.
Apesar do ruído causado com o país e a perda de relevância para a Venezuela, o chanceler Mauro Vieira declarou nesta semana que o Brasil não deve romper com a Venezuela. “Ainda que as circunstâncias imponham uma inevitável redução do dinamismo do relacionamento bilateral, isso não significa, de forma alguma, que o Brasil deve romper relações ou algo dessa natureza com a Venezuela”, disse o ministro.
Dívida da Venezuela
A dívida da Venezuela com o Brasil, até o dia 31 de outubro deste ano, era de US$ 1,69 bilhão – cerca de R$ 9,6 bilhões, na cotação atual – já incluindo juros de mora. O saldo devedor vem de empréstimos feitos ao país através de obras de infraestrutura em território venezuelano. O dinheiro foi contratado via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e repassado diretamente às empresas brasileiras que realizaram as obras no país vizinho. O regime venezuelano, então, passou a ser o responsável por devolver o valor emprestado.
Em caso de inadimplência, como é o caso da Venezuela, o BNDES aciona o Fundo de Garantia à Exportação (FGE) para receber o valor devido pelo país estrangeiro. A União assume a dívida e o Brasil é quem deve passar a cobrar o país devedor. É neste estágio que se encontra a situação com Caracas.
O BNDES fez empréstimos no total de US$ 1,5 bilhão à Venezuela para operações relativos a serviços de engenharia. Entre as construções, estão a linha 5 do metrô de Caracas e a linha 2 do metrô de Los Teques, construção do estaleiro Astialba e da Siderúrgica Nacional. A dívida que o país possui com o Brasil inclui ainda a venda de aeronaves da Embraer à empresa estatal venezuelana Conviasa.
Do valor financiado pela instituição financeira, a Venezuela pagou US$ 680 milhões. Há ainda US$ 16 milhões referentes a prestações em atraso em processo de indenização e US$ 31 milhões constituem o saldo devedor de parcelas a vencer, com vencimento até janeiro de 2025.
O afastamento calculado de Maduro
Lula possui uma relação de proximidade histórica com o chavismo, mas esse relacionamento foi afetado nos últimos meses após a comprovada fraude eleitoral orquestrada por Maduro para se reeleger como presidente da Venezuela. O mandatário brasileiro chegou a atuar para a realização de eleições democráticas do país mas não obteve sucesso.
Maduro que esperava apoio de Lula após o fraudulento pleito eleitoral, teve de lidar com cobranças do governo brasileiro – ainda que consideradas brandas. Após o Brasil optar por não reconhecer sua reeleição, Lula apostou em um distanciamento do autocrata venezuelano. A imagem do petista já vinha se desgastando, externa e internamente, pelas tentativas de ajudar o amigo venezuelano.
No último mês, após o Brasil se opor à adesão da Venezuela como membro parceiro dos Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Etiópia e Irã), a relação com a Venezuela chegou ao ápice da crise. Maduro escalou o tom e a chancelaria bolivariana passou a fazer ataques ao Ministério das Relações Exteriores e a diplomatas brasileiros.
A situação, apesar de ter causado um desconforto interno nos bastidores do Itamaraty, não gerou uma reação da pasta. Porém, após a Polícia Nacional Bolivariana da Venezuela, controlada pelo regime de Maduro, publicar uma montagem de Lula com tom ameaçador contra Lula, a chancelaria brasileira reagiu aos ataques orquestrados pelo ditador venezuelano.
“O governo brasileiro constata com surpresa o tom ofensivo adotado por manifestações de autoridades venezuelanas em relação ao Brasil e aos seus símbolos nacionais. A opção por ataques pessoais e escaladas retóricas, em substituição aos canais políticos e diplomáticos, não corresponde à forma respeitosa com que o governo brasileiro trata a Venezuela e o seu povo”, diz a nota do Itamaraty.
Neste domingo (10), em entrevista à Rede TV, Lula falou sobre os recentes acontecimentos envolvendo o país vizinho pela primeira vez. O brasileiro afirmou que Maduro é um “problema da Venezuela”. “Eu aprendi que a gente tem que ter muito cuidado quando a gente vai tratar de outros países e de outros presidentes. Eu acho que o Maduro é um problema da Venezuela, não é um problema do Brasil”, disse Lula.
“Eu quero que a Venezuela viva bem, que eles cuidem do povo com dignidade. Eu vou cuidar do Brasil, o Maduro cuida dele, o povo venezuelano cuida do Maduro, e eu cuido Brasil. E vamos seguir em frente. Porque também não posso ficar me preocupando. Ora brigar com a Nicarágua, ora brigar com a Venezuela, ora brigar com não sei com quem. Tenho é que tentar brigar para fazer esse país dar certo”, afirmou.