O mercado de energia do Brasil ficou mais de duas semanas travado, sem liquidez para transações, temendo que a Gold, uma das maiores comercializadoras independentes do setor, quebrasse depois de acumular prejuízos em duas operações baseadas em projeções de preços equivocadas. A Máxima, de menor porte, está em fase final de renegociação por causa de problemas similares. A 2W, outra empresa com dificuldades, recorreu à Justiça para suspender cobranças, pedindo tempo para negociar com credores.
Não é de hoje que esse segmento sofre, vez por outra, uma crise que leva até à quebra de empresas, mas desta vez, o setor ligou a luz amarela.
O contexto atual tem um novo componente: o aumento dos riscos para operar no mercado de energia. Por mais que as empresas citadas tenham sofrido revezes pontuais e particulares, o ambiente ficou mais adverso não apenas para comercializadores —cujo negócio é mesmo administrar riscos—, mas também para geradores, especialmente de renováveis, e até para o ONS (Operador Nacional do Sistema).
A ponta mais visível do problema é a variação do preço de energia no curto prazo, conhecido no setor como PLD (Preço de Liquidação das Diferenças). Várias fontes usaram a expressão “preço doidão” para qualificar o sobe e desce.
Depois da seca de 2021, o valor de curto prazo caiu para o piso, de R$ 61,07 pelo MWh (megawatt-hora) e voltou a subir só no começo da estiagem deste ano. Foi para a casa entre R$ 200 e R$ 300. Com a restrição das hidrelétricas, porém, passou a oscilar por hora, principalmente no final do dia, e também entre regiões do país, sem seguir padrão. Pode dobrar e cair à metade. Num dia, chegou a bater R$ 1,4 mil, e logo depois voltou a R$ 61.
“O mercado mudou muito e rápido demais”, explica o empresário Marcelo Parodi, sócio-fundador e CEO da Enercore Trading. Com 26 anos de setor, Parodi é egresso do mercado financeiro, participou da criação de empresas como Comerc e Compass, e diz que o setor vivencia uma mudança estrutural.
“A matriz, antes basicamente hídrica, com apoio de térmicas, agora inclui mais energia renovável, intermitente, e o clima também mudou. Isso significa mais volatilidade —volatilidade climática e de preço. Ficou mais difícil operar, e vai piorar.”
A Gold derrapou aí. Para outubro, acreditou que haveria queda no preço (estava vendida, como se diz no jargão financeiro), mas o preço aumentou. Na tentativa de reverter o prejuízo, apostou na alta para novembro. Errou de novo. Choveu, e o preço caiu. Como comercializa grandes volumes, com grandes empresas, o mercado gelou. Um calote promoveria efeito dominó de prejuízos.
No ano passado, a Gold movimentou 2,5 MW médios. Neste ano, estava indo a 3,5 MW antes do baque. Seu faturamento anual é estimado em R$ 3 bilhões.
A empresa, então, contratou a Alvarez Marsal, consultoria especializada em reestruturação, e partiu para negociação de contrato a contrato. Segundo a Folha apurou, reviu mais de 80 contratos de outubro para evitar o pior. Na contraparte, o mercado identificou que estavam empresas com fôlego, como CPFL e os bancos BTG e Santander. Procurados pela reportagem, BTG e CPFL disseram que não comentariam. O Santander não se posicionou até a publicação desse texto.
Na sexta-feira (8), data em que ocorreu a divulgação mensal do balanço setorial, a Gold apareceu no azul na contabilidade da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica). A assessoria de imprensa da empresa confirmou que, no meio da segunda-feira (11), quase 100% dos contratos já tinham sido renegociados.
O que se diz no mercado é que ela fez uma operação ousada, e foi no mínimo imprevidente, pois ficou claro que encarou um risco além de seu limite. Procurada, a empresa não comentou essa avaliação setorial.
Apesar de parecer que o pior já passou, executivos de outras empresas do setor ouvidos pela reportagem, que preferem não ter o nome citado, reclamam que esse sufoco escancarou a situação delicada do mercado. Mostrou, por exemplo, uma falha de regulação. Apesar de a transação de energia ser similar à de outras praticadas no mercado financeiro, uma comercializadora pode montar uma operação grande e arriscada sem margem —nome dado à garantia financeira, padrão na Bolsa, que é exigida para cobrir eventuais prejuízos.
Hoje a negociação de energia é um negócio que atende empresas, mas a pretensão é estendê-la aos consumidores residenciais. Por isso, entende-se que reforçar a segurança é essencial.
O executivo Rodrigo Ferreira, presidente da Abraceel, entidade das comercializadoras, lembra que, em 2012, o setor deixou de compartilhar perdas, evitando o risco sistêmico. O mecanismo, chamado de bilateralização, faz com que a comercializadora com problemas negocie com suas contrapartes. Ainda assim, Ferreira entende que é preciso mais.
Ele lembra que, juntamente com a CCEE, a Abraceel propôs e está acompanhando a implementação do chamado monitoramento prudencial, que inclui um conjunto de medidas para tornar mais transparentes os riscos financeiros de cada um dos agentes. O regramento deve ser definido, ainda em 2025, pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).
“Passada essa fase, e entendido o nível de exposição do mercado, teremos as discussões sobre garantias financeiras e acreditamos que também haverá discussões sobre formas de organização do mercado”, afirma.
A oscilação do preço, no entanto, é sintoma, não a causa dos dissabores setoriais. A eventual solução para as comercializadoras não encerra as distorções, pois outros segmentos estão sofrendo.
O que trouxe o país a esse momento, explicam especialistas, foi uma combinação de medidas qualificadas como desconexas. A raiz do problema está no excesso de subsídios, que incentiva a expansão da geração, sem nenhum planejamento.
O boom se concentrou em projetos de energia solar e eólica, no Nordeste e no Norte, longe dos centros consumidores no Sudeste e Sul. Há também forte avanço da GD (geração distribuída), país afora, com a instalação de painéis solares.
Isso deu ao Brasil uma das matrizes de energia mais limpas do mundo —ponto positivo para reduzir emissões. Porém, alterou a estrutura da operação do sistema nacional. Apesar de os problemas serem crescentes, não houve revisão do modelo que rege o funcionamento do setor, nem uma efetiva suspensão dos subsídios. O MME (Ministério de Minas e Energia) já anunciou que faria mudanças, mas elas ainda não vieram. (leia abaixo alguns problemas).
Sem a reestruturação, ONS passou a fazer cortes na oferta das renováveis, procedimento que parte do mercado chama de curtailment e busca evitar uma produção de eletricidade maior do que a demanda do país e acima da capacidade de transmissão.
As geradoras não são ressarcidas pela maior parte desses cortes, então, para cumprirem os contratos, usam seus recursos e compram energia no mercado de curto prazo, ficando expostas ao “preço doidão”. É crescente a apreensão com a saúde financeira desse segmento.
“Esses geradores têm compromissos comerciais com os consumidores e compromissos financeiros com os bancos. Estão sendo muito penalizados. E veja o paradoxo. Agora, há receio de uma crise hídrica. Temos geração termoelétrica a preços mais elevados, e desperdício de energia renovável, por uma questão restritiva e operativa. É o pior dos mundos”, diz Carlos Dornellas, diretor técnico e regulatório da Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica).
“O preço é doidão porque o modelo já estava doidão e, com as condições climáticas atuais, fica mais doidão ainda. As correções, no sentido mais amplo, ensejariam um novo modelo porque o atual está defasado.”
Em nota à Folha, o ONS afirmou que, junto a Aneel, CCEE, MME e EPE (Empresa de Pesquisa Energética), busca soluções para mitigar os impactos das restrições de geração, lembrando que as medidas envolvem desde ajustes normativos até novos investimentos na rede.
“O ONS utiliza todos os recursos disponíveis, considerando os custos e atributos de cada fonte de energia, para garantir uma operação segura e eficiente do Sistema Interligado Nacional”, explicou no texto.
“O aumento da participação da energia eólica, solar fotovoltaica e da MMGD [Micro e mini Geração Distribuída] é positiva e torna a operação mais complexa, pois exige maior flexibilidade das fontes convencionais, hidráulicas e térmicas.”
Em seu relatório de outubro, a consultoria PSR dedicou um editorial de nove páginas ao curtailment, dando a dimensão do desafio. Após o apagão de 15 de agosto de 2023, o ONS elevou curtailment de renováveis para dar segurança à operação, e 64% dos cortes foram feitos dentro desse princípio. Apenas 11% ocorreram porque houve alguma falha na transmissão, única alternativa que prevê ressarcimento parcial à geradora. O restante dos cortes ocorreu porque a oferta de energia era maior que a demanda.
DESAFIOS DA OPERAÇÃO ENERGÉTICA
Mudanças na estrutura do sistema que demandam um novo modelo para o setor elétrico:
- A expansão de parques solares e eólicos não foi acompanhada, na mesma velocidade, pela oferta de linhas de transmissão. Muitos empreendimentos, já prontos, ainda aguardam a conexão do sistema;
- Quando há estiagem, e redução na oferta de energia das hidrelétricas, a abundância na oferta de solar mantém o preço baixo durante o dia. À medida que sol se põe, porém, é preciso ter térmicas acionadas, criando os repiques nos preços;
- Tecnicamente, o sistema sempre contou com a estabilidade das hidrelétricas. Se água da usina baixa, mesmo com mais solar e eólica, a alternativa para manter o sistema estável é ligar as térmicas. Ou seja, mesmo com oferta de energia, as térmicas precisam ser acionadas;
- Para dar mais segurança ao sistema, o ONS passou a cortar o fornecimento de energia eólica e solar, preferindo o uso de térmicas. Ou seja, ainda que haja fonte abundante de renováveis, mais limpas e baratas, país depende mais de fontes caras e poluentes