Há mais de uma década, arqueólogos começaram a escavar uma das igrejas cristãs mais antigas do mundo no meio de um deserto egípcio. Atrasada por guerra, instabilidade política e uma pandemia global, a tarefa revelou-se uma visão desconcertante de como os primeiros cristãos enterravam seus mortos.
Construída em algum momento do quarto século, a igreja continha um número surpreendentemente de corpos: 11 em duas criptas e seis em túmulos separados. À época, normalmente líderes como padres e bispos seriam enterrados em uma igreja, enquanto outros seriam relegados a cemitérios. Porém naquele local a maioria dos restos mortais era de mulheres e crianças.
“O fato de haver tantos túmulos dentro da igreja é notável”, disse o pesquisador de religião egípcia David Frankfurter, da Universidade de Boston, que não estava envolvido no projeto.
Enquanto as práticas funerárias do antigo Egito tendiam a ser luxuosas e grandiosas, os enterros cristãos primitivos favoreciam a simplicidade. Os corpos na igreja estavam envoltos em linho, e apenas dois deles, dentro de caixões. Feixes de alecrim, murta e folhas de palmeira foram deixados com um corpo, e uma criança foi enterrada com uma taça de bronze.
A equipe —liderada por David Ratzan, pesquisador de civilizações antigas da Universidade de Nova York, e Nicola Aravecchia, arqueóloga da Universidade de Washington em St. Louis— começou as escavações na igreja em 2012. Mas a agitação política e a morte acidental de vários turistas pelo Exército egípcio em uma área próxima do deserto ocidental mantiveram os pesquisadores fora do Egito por muitos anos. Só em 2023 a equipe foi autorizada a voltar ao país e concluir o trabalho, conforme descrito em um livro publicado em setembro deste ano.
A igreja ficava na extremidade leste de Trimithis, uma grande cidade onde milhares de pessoas viviam. As escavações também descobriram uma vila, um templo pagão e um banho romano, todos erguidos no que o arqueólogo Richard Long chamou de “um dos ambientes mais áridos e hostis da Terra”.
No final do quarto século, Trimithis foi abandonada. Porém, devido a sua localização remota, a cidade não se desenvolvia em grande escala. Camadas de areia a preservaram por quase dois milênios.
Embora Trimithis fosse remota, sua robusta produção de tâmaras e azeitonas permitia aos moradores negociar com outras pessoas nas terras ao longo do rio Nilo. Uma mulher de meia-idade enterrada na igreja tinha todos os dentes intactos, possivelmente evidência de uma boa dieta e uma vida de relativo conforto, apesar do ambiente hostil.
“Era muito mais interconectada com o mundo do que se poderia imaginar à primeira vista”, disse Aravecchia sobre a cidade, hoje chamada de Amheida.
A estrutura da igreja seguia o estilo de basílica que na época era popular em Roma, um sinal de que o modelo romano chegara a Trimithis em apenas alguns anos.
“Você tem a mesma arquitetura usada em igrejas públicas no meio de uma vila no meio do nada”, disse Ratzan.
O imperador romano Constantino converteu-se ao cristianismo em 312 d.C. A igreja do deserto foi construída algumas décadas depois, conforme a religião ganhava popularidade.
As descobertas surpreendentes nas criptas sob a igreja sugerem que a doutrina cristã permaneceu aberta à interpretação à medida que era abraçada por milhões de pessoas no Império Romano.
“É um momento interessante e desconfortável para a igreja”, afirmou Ratzan, com a religião outrora revolucionária experimentando as vestimentas do oficialismo.
Apesar de milhões terem adotado a nova fé, ainda havia espaço para experimentação, incluindo em como pensar sobre a morte.
“As pessoas estavam preocupadas com o cadáver, não com a ressurreição ou com a alma”, afirmou Frankfurter sobre a igreja de Trimithis.
Isso iria de encontro à ideia predominante de que o cristianismo estava mais preocupado com o espírito do que com o corpo quando se tratava da vida após a morte.
A preponderância de corpos femininos também é intrigante, segundo os especialistas.
“Temos amplas evidências de que as mulheres ocupavam cargos de liderança no cristianismo antigo”, disse Laura Nasrallah, especialista em cristianismo primitivo na Universidade de Yale. Mas ela alertou que ainda não sabia o suficiente sobre a igreja de Trimithis para dizer se as mulheres enterradas lá poderiam ter sido autoridades religiosas.