Portuguesa de origem angolana, Myriam Taylor é um dos nomes mais respeitados da União Europeia em questões de gênero e raça. Ela é uma das organizadoras do Humanity Summit, evento gratuito que ocorrerá no Rio de Janeiro deste domingo (17) até a próxima quarta-feira (20), paralelamente à reunião dos países do G20. Não é por acaso.
Ela considera que grandes fóruns internacionais, como as COPs (conferências do clima das Nações Unidas) e o G20, não estão “nada abertos” a questões de gênero e raça, e iniciativas de inclusão nesses eventos costumam se reduzir a participações figurativas.
“Queremos criar um espaço onde amplificamos as vozes dessas pessoas que estão nas franjas sociais”, diz Taylor.
Taylor viveu em sete países de três continentes e tem uma árvore genealógica que daria um livro. Entre seus antepassados há judeus de origem africana e europeia, o alfaiate real do monarca Carlos 1º de Portugal, empresários da área do vinho e o homem que traduziu as regras do futebol para a língua portuguesa. Além de Portugal e Angola, Taylor morou na Holanda, França, Inglaterra, Espanha e Brasil.
Em 2019, ela coordenou, em Portugal, uma iniciativa que reuniu várias organizações da sociedade civil para apresentar propostas concretas ao governo do país. Taylor falou com a Folha em Lisboa.
Paralelamente à reunião do G20 acontecerá, no Rio de Janeiro, o Humanity Summit, onde será discutido o Pacto para a Humanidade. O que é o Pacto para a Humanidade?
É um pacto que visa promover a Justiça e a equidade, inspirando a criação ou o fortalecimento de políticas. Inclui a ampliação da programação afirmativa, o combate à desigualdade racial e social e o fortalecimento das comunidades marginalizadas, como indígenas e quilombolas.
Existem vários grupos de trabalho oficiais do G20. Nós não somos um grupo de trabalho oficial, representamos o lobby da sociedade civil. Nosso diferencial é dar sugestões práticas, levar “roadmaps” [planos estratégicos].
Desde o princípio vocês trabalham, no nível da sociedade civil, com questões de gênero e raça. Fóruns como o G20 estão abertos para essas questões?
Nada abertos. Veja o caso do Brasil. O país tem uma maioria de pessoas negras e indígenas. Mas elas estão em lugares de poder? Você vai às COPs e vê pessoas negras e pessoas indígenas com suas roupas tradicionais, mas igualmente não estão nos centros de decisão.
Queríamos que essa participação não fosse apenas figurativa. Esses lugares de poder deveriam ser um espelhamento de nosso tecido social, quer em Portugal, quer no Brasil. Esse é um dos objetivos do nosso Pacto pela Humanidade: puxar as pessoas que estão na base da pirâmide para ser protagonistas dessas conversas, dentro de um mundo estratificado, com um problema sistêmico que se chama racismo.
Nosso trabalho, no fundo, passa por isso. Queremos criar um espaço onde amplificamos as vozes dessas pessoas que estão nas franjas sociais.
Você falou em “roadmaps”. Como vocês desenvolveram esse método de trabalho voltado para as sugestões práticas?
Tudo começou em 2019, quando fizemos em Lisboa um encontro chamado We Colloquium, com o apoio de Amália Fischer e Vania Narciso, do Elas+, um fundo brasileiro dedicado às causas sociais. É um dos poucos fundos desse tipo do mundo, que visa canalizar recursos para ajudar, para capacitar, empoderar, dar microfinanciamento a mulheres em diferentes áreas. O evento foi na faculdade de economia da Universidade de Lisboa.
No princípio, nossa agenda era principalmente feminista, mas foi se expandindo para outras áreas. Juntaram-se representantes de vários setores da sociedade civil. O desafio era mapear as principais áreas onde há barreiras para a ascensão social. Embora o encontro reunisse pessoas de vários países, o foco dos grupos de discussão foi Portugal.
Em que áreas estavam essas barreiras?
A polícia, a educação e a mídia. A polícia porque, por exemplo, as mulheres vítimas de violência doméstica se sentiam menos seguras no momento da apresentação da queixa. Os números indicam que muitas mulheres vítimas de violência em Portugal são vítimas de militares, o que as deixa ainda mais inseguras ao falar com os policiais. Essa insegurança se estendia também a pessoas negras e pessoas trans.
Depois vem a educação, porque acabava reforçando todos os estereótipos e preconceitos. E, quando a educação falha, a mídia faz o mesmo que a educação, deseduca.
E o que vocês fizeram com essas conclusões?
Quando terminou esse encontro de 2019, nós partimos para o lobby. Tivemos várias reuniões, várias audiências, com ministros e secretários de Estado.
Tivemos um apoio incrível da Rosa Monteiro, que foi secretária de Estado da Igualdade de Portugal. Ela, inclusive, nos acompanhou a cada uma das reuniões que tivemos em outros ministérios. Via-se que havia mesmo uma vontade de encontrar uma solução para os problemas com os quais nos deparamos.
Conseguiram algum resultado prático?
Foi criado no governo português, ainda no tempo de Rosa Monteiro, um Plano Nacional Estratégico contra o Racismo e a Discriminação, que reflete muitas dessas lutas e muitas recomendações surgidas dentro do encontro.
Outra coisa muito tangível aconteceu na área do cinema e do audiovisual. Começamos a ver mais conteúdos produzidos com a presença de afrodescendentes em todos os canais nacionais. Tivemos também reuniões com a administração interna no sentido de iniciarmos um conjunto de formações para a polícia, mas tem sido difícil essa implementação.
Tudo isso se deu durante o governo do Partido Socialista, que perdeu as últimas eleições para o Partido Social Democrata?
Sim, mas eu ouvi que este atual governo está pegando o assunto e sei que vai seguir.
E como vocês irão levar essa dinâmica à reunião do G20 no Rio de Janeiro?
Temos apoios como o da Oi Futuro, que cedeu o local, do Imperial College de Londres, da Universidade Greenwich de Londres e da Universidade da Califórnia, que tem uma verba para investimento em projetos sustentáveis. Há também grupos das Nações Unidas, como o Fórum Permanente dos Afrodescendentes.
Convidamos também vários grupos importantes da sociedade civil brasileira e esperamos a adesão de muitos deles.
No documento, vocês dizem que estão engajados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas…
Sim, estamos. Nós nos apresentamos, na verdade, como aceleradores para que esses objetivos sejam atingidos. O que nós fazemos é olhar para os ODS de forma interconectada, preenchendo os pontos cegos entre eles, e propondo os “roadmaps”.
No caso do Brasil, por exemplo, há a floresta amazônica, que envolve preservação, justiça climática, uso de tecnologias sustentáveis, um plano de transição energética, com o grande potencial do país em energias renováveis, a redução da dependência de combustíveis fósseis e a questão social. A proposta é criar um modelo de transição que inclua, que não deixe ninguém para trás. Queremos juntar tudo isso e atrair projetos incríveis.
Poderia dar um exemplo?
Bateu à minha porta, por exemplo, um projeto desenvolvido no México que queremos mostrar no Brasil. É sobre habitações sustentáveis para pessoas de baixa renda, onde elas nunca perdem. Criam-se cooperativas com lógicas financeiras diferentes.
Se alguém perde o trabalho, a comunidade segura. No fim, todos ganham com a valorização final do projeto. O manancial de possibilidades como essa é incrível.
Quem for ao Oi Futuro, para o Humanity Summit, verá o que exatamente?
Vamos ter mesas-redondas, workshops, experiências imersivas com realidade aumentada e realidade virtual. Vamos ter muitas surpresas também. Qualquer um pode participar, é gratuito, basta se cadastrar no site humanity-summit.com.
RAIO-X
Myriam Taylor, 48
1976, Albufeira (Algarve), Portugal
Estudou Artes Cênicas na Universidade Rose Bruford, em Londres. Empreendedora social, criou e participou de projetos em Portugal, Reino Unido, Itália, França, Angola e Brasil, com foco em questões de direitos humanos, sustentabilidade, gênero e raça. Taylor é fundadora da Muxima-Bio, empresa que se dedica a desenhar projetos de impacto social.
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.