O Brasil acaba de ganhar uma nova espécie de ave fóssil do Cretáceo Superior. Batizada de Navaornis hestiae, ela foi encontrada em rochas com idade estimada de 80 milhões de anos da formação Adamantina, parte da bacia Bauru, na entrada de Presidente Prudente (a 558 quilômetros da cidade de São Paulo).
O fóssil consiste em um crânio com mandíbulas sem dentes quase completo associado a parte de um esqueleto e a uma caixa craniana. Ele preserva detalhes tridimensionais do crânio que revelam adaptações evolutivas fundamentais das aves, colocando-o em uma posição intermediária entre as aves primitivas do Mesozoico, conhecidas como Enantiornithes (de 135 milhões a 66 milhões de anos), e as aves modernas, Neornithes.
A descoberta é descrita em estudo publicado nesta quarta-feira (13) na revista Nature. Entre os autores do trabalho estão Luis Chiappe, curador do Instituto do Dinossauro do Museu de História Natural de Los Angeles (EUA); Guillermo Navalón, pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Cambridge (Inglaterra); Ismar de Souza Carvalho, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro); e Rodrigo Santucci, professor da Universidade de Brasília (UnB) de Planaltina.
O exemplar foi encontrado por William Nava —daí o nome do gênero, Navaornis— em 2016 e pertence à coleção do Museu Paleontológico de Marília, no qual ele é diretor. Os autores do novo estudo realizaram uma análise de tomografia computadorizada no fóssil —similar a uma máquina de raio-X, mas com maior precisão—, permitindo visualizar as estruturas internas dos ossos ainda presos à matriz rochosa.
Com isso, puderam fazer a reconstituição de partes do crânio de Navaornis, incluindo o chamado endocasto, que é o molde deixado na cavidade craniana pelo cérebro, revelando semelhanças com o cérebro das aves modernas. Entre essas características, de acordo Chiappe, estão a posição do cérebro na caixa craniana, o canal semicircular (relacionado ao ouvido) anterior expandido e uma área relacionada à cognição maior.
“Digamos que Navaornis seria a ‘pedra de Rosetta’ da paleontologia porque conecta dois pontos na evolução do cérebro das aves separados por mais de 70 milhões de anos”, disse Navalon, por email, à reportagem.
O animal também possui alguns elementos que o colocam dentro do grupo das aves extintas com a Archaeopteryx —a famosa ave fóssil encontrada em sedimentos de Solnhofen, na Alemanha— e com aves sem dentes do Jurássico da China.
“É difícil dizer com certeza se as mudanças ao longo dos mais de 80 milhões de anos foram relacionadas à ecologia ou comportamento, porque isso envolve um projeto de pesquisa específico para desvendar, mas podemos fazer algumas especulações”, diz Navalón.
“A primeira é que o telencéfalo de Navaornis tem um tamanho intermediário entre Archaeopteryx e as aves modernas. Nos mamíferos, essa área forma o córtex, e nas aves modernas tem função equivalente, com um aumento da atividade cognitiva. Outra característica é que os lobos ópticos [dos olhos] de Navaornis são relativamente expandidos, sugerindo que o animal pode ter sido diurno”, acrescenta ele.
O grupo diz que vai buscar e estudar outras aves fósseis intermediárias para ajudar a elucidar como essas transformações ocorreram.
“Essa evidência precisa ser recuperada de fósseis tridimensionais bem preservados, e é provável que descobertas futuras forneçam novos dados sobre a história evolutiva do cérebro aviano”, afirma Chiappe.
O curador da coleção de aves e professor do Museu de Zoologia da USP, Luís Fábio Silveira, que não participou da pesquisa, comentou o estudo a pedido da reportagem e disse estar impressionado com a morfologia craniana de Navaornis, semelhante à de uma ave moderna, apesar de pertencer a um grupo já extinto.
“Neste mesmo período, os enantiornitídeos e o grupo que originou as aves modernas compartilhavam o mesmo espaço, e apenas os primeiros se extinguiram. A estrutura do cérebro destas aves, que já voavam bem, sugere abordagens interessantes a partir de agora para que a gente possa compreender melhor a evolução do voo ao longo do tempo”, afirmou.
Para Carvalho, o fato de o fóssil ser bem preservado não surpreende, já que outros organismos encontrados na mesma localidade, incluindo sapos, crocodilos e dinossauros, frequentemente são encontrados com preservação excepcional.
“Muitos autores já haviam chamado a região de lagersttäten [palavra em alemão para jazidas fósseis com preservação excepcional], e quando o sedimento possibilita, como foi o caso aqui, ele molda a anatomia interna dessas cavidades maiores, seja o estômago, a caixa torácica ou, nesse caso, a cavidade craniana, moldando como era a estrutura cerebral dessa ave”, diz.
Segundo o docente da UFRJ, o Brasil é um país rico em fósseis e em sítios paleontológicos, porém ainda há muito a ser descoberto com os materiais já coletados e presentes em coleções em museus e centros de pesquisa.
“A descoberta de Navaornis abre perspectivas sobre como temos trabalhado o campo, qual o foco em áreas fossilíferas mas também como podemos avaliar aquilo que está em nossos acervos científicos e de certa forma não estudamos. Isso são grandes desafios, porque demanda um outro tipo de qualificação, de um paleontólogo que não é apenas ‘caçador de dinos’, mas engajado em novas tecnologias.”