A pergunta do título é retórica: claro que feminista pode fazer plástica. Se pode fazer em paz já é outra história. Sei o que falo porque, de uns meses para cá, venho considerando fazer uma blefaroplastia, aquela cirurgia que tira a flacidez das pálpebras, dando um dar de “finalmente dormi bem essa noite” para seu perecível portador.
Sendo uma feminista que escreve há anos contra padrões opressivos de beleza, já sabia que meu plano seria questionado pelas minhas colegas, mas não esperava por certas reações.
Estava almoçando com uma delas quando contei sobre a minha ideia. Ela levantou os olhos do prato, a faca em riste: você não vai fazer isso. Tentei me justificar, explicando que, desde jovem, tenho pálpebras tão inchadas que as pessoas costumam me pedir pelo baseado, sendo que nem fumo.
Ela fitou os drapeados abaixo das minhas sobrancelhas. Não tendo coragem de mentir, apelou para a beleza do entorno: teu rosto tá ótimo, você não precisa de um procedimento invasivo. Aliás, de procedimento nenhum! Tive a sensação de que se tivesse um bigode mexicano ela bradaria contra a depilação.
Lembrei de uma amiga que precisou tirar férias para fazer uma plástica: me disse que se alguma colega de trabalho soubesse, ela perderia o crachá de Mulher Desconstruída.
Também lembrei de uma discussão que acompanhei nas redes sobre vulvoplastia, aquela intervenção que funciona como uma espécie de retrofit na vulva. Minhas colegas feministas se colocaram contra. Compreensível: neste caso, a dona da vulva sequer pode apreciar o resultado do procedimento, já que ninguém acorda de manhã, senta na frente do espelho e abre as pernas para ficar se admirando. Nem exibe esse mesmo recôndito em reuniões ou fotos —além de a vulvoplastia com fins estéticos ser voltada para o vislumbre exclusivo do parceiro, ainda pode pôr em risco o prazer da mulher, com chance de perda da sensibilidade.
Sabe quando eu colocaria meu prazer em risco para agradar a convenção estética tresloucada dos outros? Meus grandes lábios nem precisam dar a resposta. Ainda assim, não me sinto no direito de tolher quem considera fazer esse procedimento, nem qualquer outro.
Me imagino no lugar de uma daquelas consultoras de revistas femininas, que recebiam cartas das leitoras. Posso deixar minha vulva parecendo um porta-moedas com lábios em forma de zíper? Pode. Posso repuxar meu rosto a ponto de ficar com a testa na nuca? Pode. Posso colar o umbigo nas costas? Pode. Posso trocar esse nariz cheio de personalidade por um genérico? Pode, pode tudo.
Foi para isso que nós, feministas, lutamos: para sermos livres, para ter pleno poder sobre nossos corpos, sobre as nossas escolhas. É triste demais sair do jugo patriarcal para entrar em outro, para ser castrada logo por nossas parceiras que empunharam tantos cartazes ao nosso lado contra todo tipo de dominação.
Agradeço a minha amiga por tentar levantar a minha pálpebra. Ela está certa, é isso mesmo que precisamos fazer: levantar as outras, levantar cada centímetro das outras, a ponto de elas acharem que não precisam nem de base no rosto. Mas quando nem o nosso empurrãozinho resolve, melhor aceitar que vivemos em um mundo complexo, onde cada um se vira como pode.
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