O economista Plinio Nastari acompanhou a evolução do etanol e se tornou um de seus maiores defensores.
Para o presidente e CEO da consultoria Datagro, especializada em mercados agrícolas e transição energética, o programa Mover (Mobilidade Verde e Sustentabilidade) e a Lei do Combustível do Futuro colocam o Brasil na “vanguarda mundial” e dão “segurança regulatória” para a indústria automobilística se planejar.
Os dados da consultoria Datagro mostram que, apesar de a frota circulante ser dominada por automóveis flex, o uso do etanol no Brasil ainda é baixo quando comparado à gasolina. A questão financeira é o único motivo ou há alguma outra razão para isso?
Acreditamos que não é só a questão econômica. Nas regiões onde o etanol é mais competitivo, o consumo desse combustível tem representado entre 52% e 60% do total de consumo no ciclo Otto [regime de trabalho de motores flex ou puramente a gasolina].
Se fosse por uma questão puramente econômica, deveríamos ter uma proporção de frota flex que usa etanol hidratado maior do que tem sido observado na prática. Na nossa avaliação, e isso é resultado de uma pesquisa que fizemos há cerca de dois anos, muitos proprietários não sabem que o seu veículo é flex.
E ainda alguns dos proprietários de veículos de passeio acreditam que o uso do etanol traz alguma desvantagem técnica para o motor. São avaliações que não encontram respaldo, há uma falha de compreensão sobre essas questões.
O senhor vê algum desinteresse da indústria automotiva em apostar mais nesse combustível?
Muito pelo contrário. A indústria automobilística do Brasil investiu no passado e continua investindo em adaptações de uma série de componentes que trazem maior resistência e durabilidade às misturas contendo o etanol. Isso está comprovado e pode ser facilmente conferido e atestado tanto pela Anfavea [associação das montadoras] quanto pela Associação Brasileira de Engenharia Automotiva.
Há a expectativa do lançamento de modelos movidos 100% a etanol hidratado –o grupo Stellantis já homologou três produtos e vai oferecê-los a empresas e a órgãos governamentais. O senhor acha que a chegada desses carros poderá fazer com que o consumidor se interesse novamente por essa alternativa?
O desenvolvimento de motorizações otimizadas para uso exclusivo de etanol hidratado abre a possibilidade para que a relação de preço entre esse combustível e a gasolina caminhe na direção de uma condição mais favorável ao etanol.
Em 1991, quando participei da comissão para reexame da matriz energética, calculamos qual era, teoricamente, a relação de preço entre etanol hidratado e gasohol [gasolina vendida no Brasil, que é misturada ao etanol anidro]. Naquele ano, nós chegamos a um percentual de 80,76%. [hoje, nos carros flex, a relação é de aproximadamente 70%].
Portanto, quando existia uma frota de veículos com a possibilidade de otimização da motorização para uso de etanol, que levava em conta taxas de compressão mais elevadas possibilitadas pela octanagem mais alta, o aproveitamento do poder calorífico naquela situação era maior do que encontramos hoje com a frota flex.
Por que o etanol que vai na gasolina é anidro [sem água] e o etanol do posto é hidratado?
Essa foi uma decisão adotada por volta de 1978, quando foi desenvolvida a motorização para uso de álcool puro. Eu acho que foi uma decisão técnica, na época, tomada pelos engenheiros do ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica], lá em São José dos Campos [interior de SP]. Foi uma decisão daquele momento.
Essa decisão não poderia ser mudada para facilitar a adaptação dos motores?
Sim. Se nós tivéssemos eventualmente uma especificação única, haveria uma série de simplificações, sem dúvida. E a eficiência do uso do etanol, tanto nos veículos flex quanto nos veículos dedicados a etanol, certamente seria maior.
O etanol, como todo combustível, emite poluentes na queima, principalmente aldeídos. O que pode ser feito para que essas emissões diminuam?
Gostaria de fazer um esclarecimento sobre isso. A queima da gasolina gera formaldeído, que é primo do formol. A queima do etanol gera acetaldeído, que é primo do vinagre. A toxicidade do acetaldeído é cerca de 40 vezes menor do que a do formaldeído.
Em segundo lugar, o etanol é isento de chumbo e de enxofre, portanto, não contribui para a formação de chuva ácida. E praticamente não gera material particulado.
O etanol misturado à gasolina ou usado puro substitui aromáticos cancerígenos. Então, há inúmeros benefícios ambientais e à saúde gerados em relação ao combustível fóssil que ele substitui. Infelizmente, esses benefícios raramente são precificados ou são transformados em métricas que o consumidor consegue enxergar.
Em relação à emissão de gases do efeito estufa, a vantagem também é enorme porque o etanol, especialmente o produzido aqui no Brasil, tanto de cana quanto de milho, e ainda mais o de segunda geração, tem uma intensidade de carbono muito baixa.
O benefício nessa área é cada vez maior a partir de diversificações e aproveitamentos crescentes da energia integral da cana-de-açúcar. A biodigestão, com a geração de biogás e de biometano, está substituindo o óleo diesel em operações agrícolas de plantio, colheita e transporte de cana-de-açúcar.
As marcas chinesas que estão chegando ao Brasil aparentam ter dificuldades em adaptar seus carros para o uso do etanol, tanto é que já postergaram a produção de modelos flex. O que o senhor acha que há por trás dessa demora?
Eu não tenho visto essa dificuldade ou essa preocupação. Pelo contrário, tenho acompanhado declarações dos dirigentes da BYD, da GWM, todas indicando que devem adotar a tecnologia híbrida flex nas suas estratégias de desenvolvimento de motorizações.
Mas ambas disseram que logo fariam o híbrido flex, mas depois começaram a postergar as datas. A GWM, por exemplo, já mencionou 2026.
Mas 2026, do ponto de vista de planejamento da indústria automobilística, é amanhã. Porque é preciso planejar todo o “supply chain” [cadeia de fornecedores]. Eu não acho isso um atraso.
Essas empresas não foram um pouco precipitadas ao fazer os primeiros anúncios?
Eu acho que foram declarações muito positivas, que reconhecem que aqui no Brasil e, eventualmente, em outras geografias com condições semelhantes, a tecnologia híbrida flex deva ser considerada. Isso não significa que a motorização elétrica, a bateria, também não tenha o seu nicho, mas indica que eles estão atentos.
Só que na indústria automobilística, hoje, se está planejando o que vai se fazer em 2030. As coisas têm uma inércia, tem um planejamento que leva algum tempo.
A demora do governo em definir as novas alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados, o IPI Verde, estaria atrapalhando o crescimento da oferta de modelos híbridos flex?
Não vejo dessa maneira. Eu vejo que o programa Mover [Mobilidade Verde e Sustentabilidade] e a lei do combustível do futuro, ao adotarem a avaliação do ciclo de vida, colocam o Brasil na vanguarda mundial. A maior parte dos países ainda adota a emissão no cano de escape como critério.
O Brasil salta a avaliação de cano de escape, ultrapassa a avaliação do poço à roda e vai direto para o modelo do berço ao túmulo, que é a avaliação do ciclo de vida com métrica de eficiência. Isso é uma coisa extraordinária, que dá segurança regulatória para a indústria automobilística realizar o seu planejamento.
Mas, insistindo na questão da tributação e considerando a matriz energética brasileira, o que o senhor acharia justo como critério para estabelecer o IPI Verde?
Eu acho que a definição da política fiscal vai levar em conta vários fatores. Eu não tenho dúvida de que se deve levar em conta a avaliação de eficiência energética ambiental, tendo em vista o reconhecimento que já existe a respeito da importância de se avaliar o ciclo de vida.
A legislação brasileira é neutra do ponto de vista tecnológico, diferentemente do que ocorre em muitos países em que a política pública elege uma determinada tecnologia e a favorece.
O Brasil não está fazendo isso, mas, sim, está definindo qual é a meta de eficiência a ser atingida no longo prazo. Eu acho que isso é correto, é uma legislação agnóstica do ponto de vista tecnológico.
RAIO-X | PLINIO NASTARI, 68
Paulistano, é economista com PhD em Economia Agrícola pela Universidade Estadual de Iowa (EUA). É presidente e CEO da Datagro Consultoria, especializada em mercados agrícolas, transição energética e bioenergia.