Quem toma remédios como Ozempic diz que o apetite desaparece. Os “pensamentos recorrentes a respeito de comida” –imaginando qual e quando será a próxima refeição– somem. Atualmente, cientistas investigam se esse efeito potente pode ser traduzido em um tratamento para o transtorno de compulsão alimentar, o mais comum nos Estados Unidos.
Esse distúrbio prende as pessoas em um ciclo angustiante: consomem uma quantidade grande de comida em pouco tempo, além do ponto de saciedade, chegando às vezes a sentir dor. Depois, enfrentam culpa e vergonha. Por isso, voltam a comer compulsivamente.
Os cientistas ainda não sabem ao certo as causas dessa condição, mas uma teoria é que os episódios de compulsão são um comportamento relacionado aos mesmos circuitos cerebrais que nos ajudam a formar hábitos e que contribuem para o vício.
Medicamentos como o Ozempic –desenvolvido originalmente para tratar o diabetes e agora amplamente usado para a emagrecimento– podem transformar a resposta do cérebro em relação à comida.
É por essa razão que os pesquisadores acreditam que essas drogas são tão promissoras no tratamento do transtorno de compulsão alimentar, diz Trevor Steward, pesquisador da Universidade de Melbourne, que lidera um dos primeiros estudos para testá-las em pessoas com a condição. A esperança é que essa geração nova de medicamentos ofereça um novo controle sobre o impulso de comer compulsivamente.
Até agora, as provas de que esses remédios podem ajudar a combater a compulsão alimentar são baseadas em relatos pessoais. Mas certos pacientes já os estão tomando para essa finalidade, e alguns afirmam que funcionam.
“Faltava alguma coisa no meu cérebro, e agora não falta mais”, comenta Joanie Smith, de 66 anos, que toma Ozempic desde 2022. Ela havia tentado programas de emagrecimento que oferecem refeições prontas e consultas de nutrição, como o Jenny Craig (sistema de contagem de calorias), o WeightWatchers (no Brasil, Vigilantes do Peso) e até hipnose, mas nada resolveu completamente a compulsão até que ela começasse a utilizar o medicamento.
Mas alguns médicos temem que essas drogas para perda de peso possam ir longe demais, levando o paciente a restringir a alimentação a um ponto perigoso. Além disso, alertam que o transtorno de compulsão alimentar é uma condição complexa, relacionada, com muita frequência, a traumas ou dietas intensivas. Extinguir a fome por si só pode não ser o suficiente para tratá-la de fato.
‘Meu transtorno alimentar desapareceu’
Diretora do programa de Psiquiatria Metabólica da Universidade Stanford, Shebani Sethi usa uma série de ferramentas para tratar a compulsão alimentar.
Entre elas, o estimulante Venvanse (lisdexanfetamina), o único medicamento com aprovação da Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA, sigla em inglês) para esse transtorno, e medicações contra a obesidade, como o Contrave (naltrexona/bupropiona) e o Qsymia (fentermina), que atuam, em parte, reduzindo o apetite, embora não de forma tão potente quanto as novas medicações para emagrecer.
Sethi também trabalha com a elaboração de planos alimentares que mantêm o paciente saciado no decorrer do dia. Frequentemente, usa técnicas de terapia cognitiva e dialética comportamental para ajudar quem tem compulsão a entender quando está realmente com fome e satisfeito.
Nos últimos anos, também começou a prescrever medicamentos como o Ozempic para alguns pacientes com obesidade e compulsão alimentar, mas, de modo geral, não como uma primeira abordagem, já que podem ser caros e às vezes apresentar efeitos colaterais difíceis. Mas essa opção parece funcionar muito bem para aqueles que a escolhem. “Os pacientes contam que conseguem pensar em outras coisas além de comida”, afirma a médica.
Heather Loeb, de 40 anos, que vive em Corpus Christi, no Texas, já havia tentado terapia e lisdexanfetamina para aliviar a compulsão, com o qual luta desde o ensino médio. Mas quando seu psiquiatra prescreveu Zepbound (tirzepatida), há aproximadamente seis meses, “foi como se meu transtorno alimentar tivesse desaparecido. Não chego mais em casa e vou direto para a despensa para comer tudo que tem lá”.
Um dos poucos estudos a respeito da compulsão alimentar e esses medicamentos analisou 48 pacientes com a condição, tratados em uma clínica de medicina da obesidade. Aqueles que estavam tomando semaglutida, substância presente no Ozempic, viram sua pontuação nos testes de avaliação da gravidade do transtorno diminuir muito mais do que quem toma outros medicamentos para a obesidade ou o lisdexanfetamina.
“Ter funcionado melhor do que o tratamento padrão foi surpreendente, para dizer o mínimo”, diz W. Kyle Simmons, professor de farmacologia e fisiologia da Universidade Estadual do Oklahoma e autor do estudo.
Um problema maior
Segundo Kimberly Dennis, psiquiatra do conselho consultivo clínico da Associação Nacional de Transtornos Alimentares dos Estados Unidos, os medicamentos para emagrecer podem “frear” as pessoas que têm compulsão alimentar, permitindo que parem de comer em excesso.
Mas acrescenta que “é preciso garantir que o freio não esteja sempre acionado”, porque viu alguns pacientes com compulsão ficarem desnutridos em razão da ingestão insuficiente de alimentos enquanto tomavam medicamentos como o Ozempic.
Aaron Keshen, que ajuda a dirigir um programa de tratamento de transtornos alimentares na Nova Escócia, diz temer que esses medicamentos possam alterar os sinais de fome a ponto de as pessoas perderem completamente o apetite. Isso é passível de ser ainda mais problemático para quem tem compulsão alimentar e tenta uma reconexão com os próprios sinais de fome. O paciente que consome esse tipo de medicação, em vez de aprender a parar de comer quando está saciado, talvez mal se alimente, trocando um tipo de transtorno alimentar por outro.
Ele e outros especialistas afirmaram que qualquer paciente que usa um medicamento para perda de peso deve ser avaliado para detectar algum transtorno alimentar, de modo que os médicos possam alertar o portador dessa condição a respeito dos riscos e garantir que receba um tratamento mais completo.
A recuperação é muito mais complexa do que só reduzir a frequência dos episódios de compulsão, ressalta Rachel Goode, pesquisadora de transtornos alimentares da Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. Constantemente, pessoas se enchem de comida para evitar sentimentos negativos. “E quanto a todos os problemas emocionais e psicológicos subjacentes, o trauma, as habilidades de enfrentamento, que muitas vezes estão provocando problemas alimentares e que ainda precisam de suporte?”, observa.
Para Loeb, os episódios de compulsão eram uma pausa momentânea do estresse do trabalho ou da rotina materna. Em certos dias, a paciente ligava para seu emprego e dizia que estava passando mal, pegava uma variedade de entradas e pratos principais do restaurante Olive Garden e colocava tudo na mesa em frente à TV “como se fosse um piquenique”. “Eu não lidava com meus sentimentos. Eu os engolia”, resume.
Usando a tirzepatida, raramente sente fome. Mas ainda se sente sobrecarregada. Algumas semanas depois de começar a tomar o medicamento, reuniu um monte de Doritos e aperitivos de frutas, na esperança de encontrar aquele alívio. Só deu algumas mordidas antes que começasse a sentir enjoo. A comida era sua válvula de escape, mas agora precisa encontrar outras maneiras de ter essa sensação.
Sarah House, jovem de 27 anos que mora em Seattle, também estava acostumada a recorrer à comida quando estava estressada. No ano passado, quando começou a tomar o medicamento Wegovy, ficou surpresa com a rapidez com que “o desejo de comer em excesso desapareceu totalmente”, mesmo nos primeiros dias agitados cuidando de um cachorro filhote. Mas, depois de seis meses, a caneta não estava mais disponível nas drogarias. Muitas vezes, o paciente precisa interromper o uso de um medicamento para emagrecer em decorrência da falta de estoque ou de problemas com o plano de saúde.
House começou a tomar lisdexanfetamina, que a ajuda, mas, sem a caneta de semaglutida, às vezes ainda experimenta episódios de compulsão. Sente que o cérebro volta ao modo automático quando está ocupada ou estressada. Só pensa em comer mais. “Esses medicamentos são como um curativo. Quando você o remove, a ferida volta a sangrar.”