O Conselho Federal de Medicina (CFM), entidade de classe conhecida mais recentemente por seus posicionamentos negacionistas e proteção a práticas sem comprovação científica, protagoniza atualmente mais um episódio controverso ao acionar a justiça para impedir a implementação de ações afirmativas em processos seletivos para programas de residência médica.
Antes da ação judicial, o CFM publicou uma nota comentando o assunto, na qual defende que as cotas vão criar uma “discriminação reversa”, pois as desigualdades já foram resolvidas com a entrada dos grupos menos favorecidos nos cursos de medicina. Isso, infelizmente, não é verdade, visto que as políticas de reserva de vagas contemplam, via de regra, as instituições públicas e, de acordo com dados da Demografia Médica no Brasil (2023), as instituições privadas são responsáveis por mais de 76% das vagas de graduação em medicina no Brasil.
No estado de São Paulo, a situação é ainda mais grave, pois mais de 90% do ensino de graduação em medicina é privado. Desde a década de 1990, a quantidade de instituições que oferecem cursos de medicina no Brasil passou de 78 para 389. Somente nos últimos dez anos, 190 instituições de ensino médico entraram em funcionamento.
A expansão de vagas de graduação em medicina tornou-se um grande negócio para os grupos que operam no sistema superior de ensino. O valor médio das mensalidades cobradas pelas instituições privadas em 2022 era de R$ 9.044,92, com valores variando entre R$ 4.984,51 e R$ 12.850,00. Considerando esses valores, a Demografia Médica do Brasil estimou que os cursos de medicina privados em atividade no país em 2022 teriam uma receita potencial de R$ 20,9 bilhões, considerando a ocupação total das vagas autorizadas pelo MEC ao longo dos seis anos de duração do curso.
Em 2022, quatro grandes grupos empresariais da área de educação concentravam juntos cerca de 90% das vagas privadas de medicina no Brasil. Além das mensalidades pagas pelos estudantes, a expansão dos cursos de medicina também impulsiona outros negócios e interesses dessas instituições privadas, que se beneficiam do crescente mercado de formação médica, de acordo com estudo conduzido pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Ao ignorar tais evidências e sustentar uma posição de suposta neutralidade e em defesa da meritocracia, a ação do CFM exemplifica uma visão limitada sobre justiça social e diversidade na medicina, que pode ser interpretada como racismo institucional, pois desconsidera as desigualdades estruturais que marcam o acesso à educação e à formação médica no Brasil.
Destaca-se ainda que a diversidade racial nos cursos de medicina e nas residências médicas é essencial para a construção de um sistema de saúde mais inclusivo e focado na inversão dos indicadores de saúde da população negra, os piores no Brasil, de acordo com o Boletim Epidemiológico: Saúde da População Negra. Por exemplo, em doenças como o câncer de mama, mulheres negras têm uma sobrevida até 25% menor do que pacientes brancas, segundo levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Assim, a presença de profissionais negros é fundamental para combater o racismo institucional que permeia o atendimento em saúde. Ao compartilharem experiências culturais e raciais semelhantes às de seus pacientes, esses profissionais tendem a compreender melhor as necessidades e as particularidades, promovendo um atendimento mais humanizado e eficaz.
Em síntese, a postura do CFM contra as ações afirmativas nas residências médicas evidencia o racismo disfarçado em defesa de uma suposta meritocracia. Ao desconsiderar o contexto histórico de desigualdade racial e as barreiras enfrentadas por minorias, o Conselho reforça uma visão elitista, que, em última análise, prejudica a construção de uma medicina mais representativa da democratização da saúde no Brasil.
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