É madrugada, e o movimento não para nas minas de lítio do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. O barulho de centenas de máquinas remexendo o solo ecoa pelas montanhas e acaba com o sossego das comunidades tradicionais da região.
O relógio marca 3h30 quando uma fila de caminhões se forma no alto de uma colina. Com ajuda de tratores, toneladas de pedras são despejadas morro abaixo. O estrondo se mistura ao ruído dos motores e alcança as 70 casas do povoado de Piauí Poço Dantas, em Itinga (MG), estabelecido há 150 anos nas margens do riacho Piauí, um afluente do rio Jequitinhonha.
A colina, na verdade, é a Pilha 5 de estéril —conjunto de materiais não aproveitáveis— da maior mina de lítio do Brasil. Com 20 metros de altura e 560 mil m2, sua área cresceu quatro vezes nos últimos 11 meses e já está a poucos metros do riacho e das casas do povoado. Se forem mantidos os planos de expansão da mineradora Sigma Lithium, dona da operação, a situação pode se agravar ainda mais.
Com uma produção atual de 270 mil toneladas anuais de concentrado de lítio, a mineradora acaba de receber um financiamento de R$ 500 milhões do Fundo Clima para dobrar sua capacidade. O financiamento foi aprovado após uma análise do projeto e das licenças obtidas pela Sigma junto aos órgãos ambientais, diz o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), gestor do fundo criado para financiar medidas de combate às mudanças climáticas.
Para alcançar 540 mil toneladas anuais a partir de 2025, a área de empilhamento prevista no projeto inicial da empresa precisou ser quintuplicada. Os 400 mil m2 licenciados em 2019 saltaram para 2 milhões de m2 na última licença de operação, publicada em janeiro pela Semad (Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais) após parecer favorável da Feam (Fundação Estadual do Meio Ambiente).
O apressado crescimento da Sigma é ditado pela alta demanda do metal no mercado internacional, especialmente para a fabricação de veículos elétricos na China, Japão, Europa e Estados Unidos, e já faz outras mineradoras entrarem na disputa pela extração de lítio na região.
Enquanto a Sigma opera a todo vapor para compensar a brusca queda no preço do lítio (quase 90% em relação a 2022), a americana Atlas está em vias de obter a licença de operação em Araçuaí, também no Vale do Jequitinhonha; a australiana Pilbara Minerals anunciou a intenção de comprar direitos minerários em Salinas por R$ 1,95 bilhão; e a CBL (Companhia Brasileiro de Lítio), que explora uma antiga mina subterrânea vizinha à Sigma, planeja triplicar sua produção.
O avanço das mineradoras é sentido todos os dias pelos lavradores Edvaldo Pereira Santos, 63, e Angela Marques Santos, 60, nascidos e criados na comunidade tradicional de Piauí Poço Dantas. Assim como os outros moradores daquele povoado, o casal não dorme direito, tem problemas respiratórios e se revolta ao ver o paredão de pedregulhos da Sigma se aproximar cada vez mais do quintal de sua casa.
Às 6h, após mais uma noite barulhenta, Edvaldo e Angela já estão de pé. “Antigamente era um sossego. A gente ouvia os passarinhos, bebia água do riacho, as crianças não ficavam doentes. Depois que chegou essa empresa, ficou assim, ninguém consegue dormir, as crianças vivem tossindo, não têm paz”, diz a mulher ao acender a lenha no fogão de barro, que fica nos fundos da casa, frente a frente com a pilha de estéril.
Em Piauí Poço Dantas não tem água encanada, e Angela prepara o café com a água distribuída pela Sigma. A empresa cedeu caixas d’água para todos do povoado e as abastece uma vez por semana, com caminhões-pipa. “Falaram para a gente não beber mais a água do riacho”, comenta Edvaldo enquanto os três netos chegam com Evandro, seu filho, que também é lavrador.
Evandro desliza os dedos na mesa para mostrar a poeira que se formou desde a noite anterior. “Esse pó fino de malacacheta [mineral] vai matando a gente por dentro, é a silicose”, diz o lavrador de 35 anos ao lembrar da doença ocupacional que compromete os pulmões de operários da mineração —e que não tem cura. “Minha mulher acabou de sair de uma pneumonia e nossos três meninos desenvolveram asma; não saram desde que essa poeira começou.”
Procurada pela reportagem, a Sigma preferiu não se manifestar e enviou um folheto da empresa sobre “inovação e sustentabilidade social”, que lista iniciativas tomadas para beneficiar a população. Entre elas, a prioridade pela contratação de mão de obra local e programas de educação, de crédito para mulheres, de distribuição de água potável e de combate à seca e à fome.
Na varanda de sua casa, Angela recebe a visita da agente comunitária de saúde Cleony Pereira, 37, responsável pelo atendimento das 66 famílias de Piauí Poço Dantas desde 2013.
“Igual à dona Angela, todos daqui se queixam de problemas de sono, em alguns casos precisam tomar remédio para dormir e antidepressivos. Mas o que mais piorou com essa mineradora foram os problemas respiratórios. Muitas crianças e idosos com pneumonia recorrente”, diz a agente, que chama atenção para a dificuldade de atendimento no único hospital da região, em Araçuaí. “Vive lotado”, afirma.
A fila de atendimento chega a alcançar uma espera de 12 horas no hospital São Vicente de Paulo, em Araçuaí. Do lado de fora, em cadeiras colocadas sob um toldo improvisado, parentes agoniados amparam crianças e idosos que reclamam de crises respiratórias.
A 3 km de Piauí Poço Dantas, fica a comunidade Fazenda Velha, um povoado de 30 famílias, fundado há 60 anos. Assim como a comunidade vizinha, Fazenda Velha também é banhada pelo riacho Piauí. Ali, o envolvimento com o rio é diferente. A água usada para lavar louças e roupas, tomar banho e beber é encanada. O serviço de distribuição é prestado pela concessionária Copanor.
Da Fazenda Velha dá para ver de longe as operações da Sigma, e as pilhas de rejeito da CBL ficam a menos de 150 metros. A entrada da mina, subterrânea, fica a 500 metros. Apesar de a mineradora traçar um caminho que evita a proximidade dos caminhões com a comunidade, e de fazer análises frequentes dos efeitos de sua operação, há muita reclamação.
“Aqui tem muita poeira o dia todo. Tem também as rachaduras nas casas, provocadas pelas detonações”, diz o cabeleireiro José Reinaldo Silva Santos, 40, presidente da associação de moradores.
“O problema já vem de muito anos, mas com a chegada da nova mineradora [Sigma], piorou. A gente teme pelo futuro das crianças, porque esse pó de malacacheta acumula no pulmão”, diz Reinaldo, que é casado e pai de uma menina de 4 anos.
Vinicius Alvarenga, CEO da CBL, conta que a sua lavra tem “a vantagem” de ser subterrânea. “No nosso caso [de Plano de Fechamento de Mina], as pilhas já estão ambientalmente corretas, e vamos tampar a entrada da mina”, diz. Sobre a percepção das detonações na comunidade Fazenda Velha, Alvarenga explica que as análises dos sismógrafos não detectaram até agora abalos significativos e que a sua mina é a mais segura do mundo.
A situação que afeta os moradores de Piauí Poço Dantas também aflige outras comunidades tradicionais do Vale do Jequitinhonha, como quilombolas e indígenas, e já começa a gerar os primeiros conflitos fundiários em razão da exploração do lítio.
Na APA (Área de Preservação Ambiental) Chapada do Lagoão, localizada a 30 km de Araçuaí, quilombolas das comunidades Jirau, Malhada Preta e Córrego Narciso do Meio começaram a se mobilizar contra as frequentes investidas de geólogos prospectando lítio em seu território.
O caso chamou a atenção do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e da deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), que acionaram a justiça mineira em abril de 2023. Um mês depois, após visita à região, o Ministério Público de Minas Gerais recomendou a anulação da permissão para prospecção mineral na Chapada do Lagoão, que, pelo grande número de nascentes, é considerada a “caixa d’água” da região.
“Muita violação de direitos. Não tem regra e não tem limite para mineração no Jequitinhonha”, diz Cerqueira ao comentar o avanço das mineradoras. “Primeiro tem a destruição do modo de vida das comunidades, e com essa destruição vem o adoecimento da população”, acrescenta.
Nas pacatas comunidades de São José das Neves e Calhauzinho, vizinhas às jazidas da Atlas, o início das operações da mineradora divide opiniões. “Parte das pessoas acredita que a economia vai melhorar, mas a maioria se sente invadida. Além das terras que as mineradoras já compraram, querem o lítio que está debaixo da nossa”, diz o quilombola Lucas Martins, 28.
Rodrigo Menck, conselheiro da Atlas, explica que sua operação fica distante de 5 a 10 km das comunidades e lista uma série de iniciativas patrocinadas pela empresa, como programas de desenvolvimento profissional, construção de alojamento para professores na comunidade de Calhauzinho e reforma de escolas e igrejas em São José das Neves. Enfatiza ainda a importância social da estrada que a mineradora construiu, com 35 km de extensão e 12 metros de largura, que liga o centro de Araçuaí à área do empreendimento de 468 km2.
Pilha de estéril avançou 550 m em 11 meses
Em uma sobreposição de imagens, com fotos tiradas por satélite em 7 de setembro do ano passado e uma fotografia aérea captada pela nossa reportagem em 22 de agosto, é possível constatar que a Pilha 5 de estéril avançou 550 metros em direção ao povoado Piauí Poço Dantas e ao riacho Piauí.
Em um dos pontos, o depósito de estéril já chega a 60 metros do riacho e a 90 metros de algumas casas. A expansão coloca o curso d’água, as casas e a Escola Municipal Nuno Murta dentro de um perímetro de impacto classificado como de alta magnitude, segundo o relatório de impacto ambiental do empreendimento.
Para o geólogo Edson Farias Mello, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro),
“se a comunidade está sendo afetada pela poeira e pelo barulho, é preciso saber que medidas a empresa deve adotar para que isto não aconteça. Pode ser que se chegue a conclusão da necessidade de mudar o projeto de lavra”.
Sobre os impactos ao riacho, o geólogo diz que o corpo hídrico tem que ser protegido. “Se ele está sob uma ameaça real, já há uma inconformidade.”
Mello questiona também a resistência da empresa em atender a reportagem e diz que a atitude vai contra o princípio de transparência, conforme orientam o ICMM (Conselho Internacional de Mineração de Metais) e o Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração) para a participação das partes interessadas no Plano de Fechamento de Mina, em especial, as comunidades diretamente afetadas.
O plano de fechamento de mina consiste no planejamento da desativação total das estruturas de uma mina, de maneira a seguir um roteiro que envolve aspectos ambientais e socioculturais, a fim de assegurar um futuro sustentável quando a empresa mineradora tiver partido. O processo faz parte das obrigações legais impostas às mineradoras.
Procurado, o governo de Minas Gerais, responsável pelas licenças de operação, indicou o secretário de Desenvolvimento Econômico, Fernando Passalio, para atender à reportagem.
“As empresas que estão indo para lá, eu conheço todas, porque esse processo de prospecção e atração de investimentos é feito aqui pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Posso garantir que são empresas das melhores práticas e de alto padrão ESG [governança ambiental, social e corporativa]”, diz Passalio.
Esta reportagem foi publicada em parceria com o site Mongabay Brasil.