Raul Lacerda, 38, se mudou para a Alemanha em 2022. Mariana Fonseca, 33, mora na Inglaterra desde o começo de 2020. Eles fazem parte de um grupo de imigrantes brasileiros que recentemente se tornou preocupação do governo: os profissionais de saúde.
Na semana passada, a Folha mostrou que o Ministério da Saúde articula uma declaração para que países membros do G20 se comprometam com os códigos de conduta estabelecidos pela OMS (Organização Mundial de Saúde) em relação ao recrutamento ético de profissionais de saúde.
O objetivo é se contrapor ao que membros da gestão Lula consideram um recrutamento predatório por países europeus que dependem de mão de obra qualificada imigrante para sustentar seus próprios sistemas de saúde.
Morador de Cottbus, cidade a cem quilômetros de Berlim, Raul Lacerda é enfermeiro. No Brasil, conta que tinha dois empregos e demorava duas horas para ir e para voltar para casa. “Aqui eu consigo deixar a minha filha na escola e buscar meu filho na creche, porque moro a dez minutos do trabalho”, afirma.
Ele diz que decidiu pela Alemanha após conversar com uma colega que havia feito o percurso. Encontrou um programa ligado ao Ministério do Trabalho alemão, e passou em um processo seletivo. “Na minha turma tinha mais ou menos uns outros 15 brasileiros”, conta. Eles tiveram suporte para aulas de alemão, processo de visto e até passagens de avião.
O programa é justamente o principal foco de descontentamento do Brasil. Auxiliares do presidente chegaram a se queixar do trabalho da Agência Federal de Emprego alemã. Em 2022, o governo alemão assinou um acordo de cooperação com o Cofen (Conselho Nacional de Enfermagem).
A professora Rosana Baeninger, do Nepo (Núcleo de Estudos de População) da Unicamp, explica que a transição demográfica europeia, com alto envelhecimento populacional, motiva programas de migração de mão de obra qualificada. “Principalmente na área da saúde, onde esse profissional é necessário para cuidar de uma população que teve uma alta na longevidade”, afirma.
Segundo dados publicados no atlas do Observatório da Emigração Brasileira, ligado à Unicamp, o número de imigrantes brasileiros na Alemanha saltou de 11 mil em 1990 para quase 71 mil em 2020.
Outro país foco de preocupação do governo Lula é a Inglaterra. A médica Mariana Fonseca é uma das 766 profissionais de saúde brasileiras registradas no sistema público de saúde local, o NHS, segundo dados do próprio órgão. O número pode ser maior, pois há brasileiros que trabalham no país com dupla cidadania europeia.
No caso de Mariana, a vontade de morar fora vinha desde a faculdade. Ela revalidou o diploma de medicina ainda no Brasil, e aplicou para empregos no Reino Unido.
“O primeiro que eu consegui foi justamente em um programa de recrutamento de profissionais para áreas que eles precisavam”, conta. Assim, ela se mudou para o distrito de Lincolnshire, no interior da Inglaterra, onde viveu antes de se estabelecer em Londres.
A médica, que acabou de terminar uma residência em medicina da família, afirma, porém, que não vê uma grande facilidade de inserção do profissional estrangeiro. “Eu tinha uma residência no Brasil, por exemplo, e tive que fazer tudo de novo porque eles não reconhecem automaticamente a especialidade”, diz.
Baeninger, da Unicamp, afirma que o processo de precarização de trabalho nos mercados globais estimula a migração. “Não é uma questão apenas do Brasil”, afirma. “O emprego que os imigrantes encontram nos países de destino pode ser precarizado também, mas quando a pessoa se muda, há outros fatores que fazem ela ressignificar essa saída”, diz.
No caso de Mariana e Raul, a violência foi um deles. “Desde que a minha filha nasceu, eu pensava em sair do Rio”, diz o enfermeiro. Já a médica afirma que já passou por tiroteios em localidades próximas às unidades de saúde onde trabalhava.
Apesar disso, eles também citam melhoras nas condições de emprego. Mariana, por exemplo, diz que ficava meses sem receber trabalhando na assistência básica de saúde na rede municipal carioca. “Aqui na Inglaterra, a gente faz greve por aumento de salário, não para receber salário, é muito diferente”, diz.
“O Brasil precisa criar políticas de valorização para essas categorias, porque os países do norte global vão precisar dessa mão de obra e sabem que nós temos uma excelente e qualificada”, diz Baeninger. “Se não há manutenção dos direitos trabalhistas desses profissionais, com vantagens comparativas, eles vão tentar ir para outro lugar.”
A médica carioca vê com preocupação o discurso de restrição imigratória para profissionais de saúde, que diz encontrar com alguma frequência partindo de médicos locais. “Aqui, acaba sendo uma xenofobia disfarçada”, fala.
Ela afirma que considera legítima uma preocupação do Brasil com a evasão de mão de obra. “Mas é preciso levar em consideração que o profissional de saúde não é um produto, são pessoas que têm poder de decisão sobre as suas vidas.”