Maniqueísmo, está no Houaiss, é “qualquer visão do mundo que o divide em poderes opostos e incompatíveis”. Talvez tenha faltado dizer que, nessa divisão, um dos lados representa o bem e o outro, o mal.
A palavra é derivada do nome de Maniqueu ou Manes, pregador religioso persa que difundiu no século 3º o dualismo cristalino de um conflito cósmico entre luz e trevas.
Maniqueu situava o mal no reino da matéria, da carne, e o bem no do espírito, mas isso não importa aqui. A palavra maniqueísmo entrou para o vocabulário comum no século 19 em sentido secular mesmo, na acepção estendida ali de cima.
Sempre teve, nesse sentido, carga negativa. Uma visão de mundo maniqueísta peca pelo perigoso simplismo das explicações chapadas para realidades humanas que, bem investigadas, revelam-se mais complexas do que isso.
Questão de maturidade. Ninguém é totalmente bom —com exceção de Deus, diriam os crentes, sem invalidar uma regra humana. E pelo mesmo princípio ninguém é completamente mau, por mais que volta e meia apareçam figuras como Jair Bolsonaro tentando nos convencer do contrário.
Nas questões de escrita literária em que me meti desde cedo na vida, aprendi depressa que o maniqueísmo era uma das marcas da arte menor. Tínhamos que fugir dele.
Mocinhos de sorriso luminoso de um lado, vilões de dentes podres do outro. Donzelas de coração puro para cá, bruxas com verrugas no queixo para lá. Tudo aquilo era lixo comercial. Talvez lotasse salas de cinema (na época isso era possível), mas tinha valor artístico ralo ou inexistente.
O maniqueísmo correspondia a uma sensibilidade infantil ou imatura. A verdadeira aventura que a arte podia proporcionar a pessoas adultas estava nos meandros morais dos meios-tons.
Dessa forma, em vez de nos tranquilizar sobre nossas virtudes e alimentar o ódio à maldade alheia, botava em perspectiva um mundo realista em que duas razões legítimas, mas opostas, podem entrar em choque sem que no fim a moral da história venha nos redimir do sofrimento.
Bom, tudo isso é para dizer que tenho repensado o maniqueísmo. Quando uma maioria expressiva do povo americano reconduz à presidência um facínora fascistoide juramentado como Donald Trump, que esquema filosófico pode expressar melhor o mundo?
Quando uma potência mundial —em acelerada decomposição, mas ainda capaz de arrastar grande parte do planeta em seu vácuo— avaliza uma criatura lamentável como aquela, podemos afirmar sem medo de errar que venceu o mal.
Não o Mal em sentido absoluto, religioso, mas o mal real, social, que se desencadeia sobre o lombo dos outros em forma de preconceito, intolerância, racismo, homofobia, xenofobia, truculência, mentira, covardia, fanfarronice e outras manifestações da indignidade humana.
Isso não quer dizer que mais de metade dos americanos sejam perversos nem que Donald seja incapaz de fazer o bem. Quase posso imaginá-lo um dia, na juventude, ajudando velhinhas —brancas, claro— a atravessar a rua. Mas isso não importa.
Nesta quarta (6) acordei com a notícia de que o mal venceu. Não sei o que fazer disso. Saio de férias para tentar descobrir. Até 12 de dezembro.
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